05/05/2021

A CALÇA DOS MORTOS

 

Resenha que publiquei ontem na Folha: 


 

Lançado em 1993, Trainspotting, o primeiro romance do escocês Irvine Welsh, foi uma sensação literária mundial, retratando uma cena pop de sexo e drogas que ainda parecia fresca na literatura e que gerou o cultuado filme dirigido por Danny Boyle em 1996. Vinte e oito anos depois, a fórmula não é tão fresca nem tão impactante – mesmo a linguagem oral (vertida de um inglês escocês no original, que pode ser um pesadelo para tradutores) já não soa tão fascinante. Mas se o impacto é perdido, é o momento de se apreciar com mais conforto o humor e o talento de Welsh como contador de histórias.

Difícil precisar em qual número da sequência de Trainspotting colocar “A Calça dos Mortos”, que a Rocco acaba de lançar no Brasil. A editora coloca como quinto, mas a história traz diversos personagens de Welsh, alguns até que não tinham relação com seu romance original, em algo que poderíamos chamar de “welshverso” (o universo compartilhado de personagens de Welsh, como se tornou comum fazer no cinema com personagens de histórias em quadrinhos). Aqui, temos Mark Renton (o junkie interpretado por Ewan McGregor no filme original) como um bem-sucedido empresário de DJS; Sick Boy como um cafetão virtual de acompanhantes de luxo; Franco Begpie como um artista plástico de gosto duvidoso e carreira em alta; Daniel Spud trabalhando como “mula” do tráfico de órgãos e drogas. São todos homens brancos héteros de meia-idade (caminhando para a terceira), ainda em buscas juvenis, em crises com suas escolhas, que escorregam sempre da alta sociedade para a sarjeta. Num cenário de viagens de trem e avião entre Los Angeles, Berlim, Amsterdã e Edimburgo eles se reencontram e tentam acertar as contas com esquemas arriscados e duvidosos. 

Não deixa de ser divertido. Um universo hiper masculino, de drogas, bebidas, gangsteres, mulheres e futebol. Mas é um bom exemplo de que, ao contrário do que prega o senso comum, a maturidade nem sempre vem a favor da literatura ou é a qualidade ideal a ser perseguida. O frescor da juventude e das primeiras publicações de um autor pode trazer uma força que se perde com o tempo – principalmente com as indulgências de uma carreira bem-sucedida. Welsh parece querer discutir isso em seu subtexto, com personagens de sua geração que, como ele, “chegaram lá”, e não se sentem confortáveis com isso.

A proposta de “A Calça dos Mortos” gera paradoxos. Como tudo na escrita (atual) de Welsh, não é nada novo – então se o livro segue a toada do romance original, não segue a intenção de ser original em si; se pode atrair quem acompanha seus personagens, também pode cansar quem já conhece a fórmula; e quem é novo no “rolê” pode ser afastado pelo excesso de referências e “easter eggs” destinados a quem já conhece (bem) o trabalho do autor. Para um leitor ocasional do “welshverso” (como eu), dá para acompanhar numa boa - é uma leitura bem prazerosa e descartável.

 

Santiago Nazarian é escritor e tradutor, autor de Fé no Inferno (Companhia das Letras, 2020), entre outros.

Avaliação: Regular. 

MESA

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