28/10/2013

A MORTE DO IRMÃO DO MÁRIO


Acordei numa casa vazia, num colchão no chão, nos subúrbios de Londres. Morava lá em 2002, trabalhando de barman, me intoxicando nas horas vagas. O menino que conheci na noite anterior, no Popstarz, já estava vestido e de pé. Disse que estava de mudança, saindo daquela casa, ou chegando naquela casa, ou que a casa seria demolida no instante em que puséssemos os pés para fora. Botou um vinil para tocar na vitrola que restava. "Lisa Says", do Velvet Underground, sob agulha e estalos, foi a trilha perfeita para aquela manhã e eternizou uma noitada que de outra forma teria sido apagada definitivamente em neurônios perdidos, garotos perdidos.


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Aos 16, no ensino médio, emprestei para um colega o "Parallel Lines" do Blondie. Ele me emprestou uma coletânea de um cantor que eu não conhecia. Tinha "Walk on the Wild Side", "Vicious", uma versão ao vivo de "Sweet Jane". Os dois CDs ainda estão aqui em casa.


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Em 2010, uma editora pediu para revisar a tradução e fazer a preparação de texto de um romance entregue com vários problemas. Entre outros assassinatos, me deparei com esse parágrafo:

So I clean and I prepare and I buy scented candles and I put on some Velvet Underground, trying to make everything perfect. It’s as if I’ve forgotten I’m immortal.

Que foi traduzido como:

Então está tudo limpo, preparado e comprei velas aromáticas e também aspergi um pouco do perfume Velvet Underground, tentando deixar tudo perfeito. É como se eu esquecesse que sou imortal.

O qual alterei para:

Então eu limpo, preparo, compro velas aromáticas e boto um som do Velvet Underground, tentando deixar tudo perfeito. É como se eu esquecesse que sou imortal.

(Não vou citar o nome do livro e da tradutora, para não destruir uma carreira.)


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Ontem estou no computador. Murilo na sala, lendo Clive Barker.

Eu: Nossa, morreu o Lou Reed.
Ele: Quem?
Eu: O Lou Reed.
Ele: Irmão do Mario?
Eu: Que Mario?
Ele: Irmão do Luigi! O que você está jogando?



Lou Reed se vai. As músicas e as histórias ficam. 

23/10/2013

A VOLTA DA VACA LOUCA 
Ana Paula Maia Minotaura, com todo respeito. 


Sou suspeito. Ana Paula Maia sempre foi das minhas preferidas, minha protegida quando eu podia proteger alguém - acabei até assinando a orelha de duas de suas publicações. Agora ela acaba de lançar pela Record seu quinto e melhor romance De Gados e Homens. 

Edgar Wilson - personagem recorrente da autora - agora trabalha num abatedouro de animais. Sensível e de poucas palavras, tenta poupar o sofrimento com golpes misericordiosos. Até que se depara com estranho desaparecimentos de gado, que o coloca de vigília junto aos colegas de trabalho.

O que Edgar Wilson faz é encomendar a alma de cada animal que abate e fazê-lo dormir antes de ser degolado. Não sente orgulho do trabalho que executa, mas se alguém deve fazê-lo que seja ele, que tem piedade dos irracionais.

Mais do que nunca, Ana Paula investe em frases diretas, em imagens telegráficas, num estilo de prosa intimamente ligado ao universo dos retratados: masculino, objetivo, com uma delicadeza muito sutil enxergada mais no não-dito Se em Carvão Animal ela investia numa pseudofilosofia sobre o fogo, aqui ela deixa para o leitor o dilema moral do abate e consumo de carne. 

Ainda há momentos deliciosos de humor - como "a guerra entre vacas libanesas e israelenses", que precisam ser separadas - e sou mais suspeito de dizer que grande graça está no personagem Santiago - tatuado, de cabelos compridos, junkie e hiperativo, que morou um tempo na Finlândia e abatia renas por lá. Acho que posso aceitar a homenagem. 


Li o livro numa sentada. Numa noite. E se posso dizer que o maior defeito do livro é sua pouca extensão (126 páginas magras), é um bom defeito, porque se cumpre perfeitamente como uma breve novela, com um ritmo adequado à sua trama, de forma alguma apressado ou inconsistente. 

Assim fico feliz de constatar realmente que esse é o melhor livro de Ana Paula Maia. O mais maduro - e meu favorito. Espero ansioso pela adaptação para o cinema. 

Santiago abatendo renas na Finlândia. 


17/10/2013

E OS JOVENS CONTINUAM ESCREVENDO...


Prefácio meu para "O Caos do Acaso", de Mauro Nunes, editora Kazua. Recém lançado: 


Este é um romance de estreia. E geralmente se associa os romances de estreia com a ingenuidade, imaturidade; quando se elogia um autor iniciante geralmente é com a palavra “promissor”, como se ele prometesse fazer melhor no futuro, como se ainda estivesse por fazer. Mauro Nunes já está fazendo.
O Caos do Acaso é um romance de estreia, com o melhor que pode haver nisso: paixão, espontaneidade, uma liberdade criativa delirante e um universo literário muito próprio, ainda não contaminado pelas formas académicas. Este não é “só” um romance  de estreia, é uma enxurrada de narrativas fragmentadas que se cruzam, se chocam e se destroem. A criança trancada num porão, o tetraplégico à espera da eutanásia, a enfermeira que realiza abortos, o gay enrustido de violência escancarada. Seus diversos protagonistas espelham o caos de um mundo esquecido por Deus – ou seria um mundo que torce demais por uma solução divina?
“Limpeza urbana, salvação da família, preservação do amor. Deve estar louco. Os valores estão falidos. Os valores não servem de nada. A sociedade se alimenta de si mesma. Se consome em miséria. Não há deus que salve.”
É uma escrita cruel, visceral, mas que a mim parece uma benção, trazendo esperança quanto ao futuro da literatura, em meio a tanto textinho pau no cu (no pior sentido), tanto autor “coxinha”.
A literatura é uma arte de senhores. E tanto se valoriza os “senhores escritores”, que muitas vezes se negligencia o talento que só um moleque de vinte e poucos pode ter. (Não é toa que todo o Romantismo foi feito por moleques que morreram cedo.) O Caos do Acaso é uma prova da importância de se escrever (e publicar) cedo. Provavelmente daqui a 50 anos Mauro Nunes ainda estará escrevendo – mas certamente não será mais capaz de escrever uma coisa dessas .
“Você não me conhece...” se apresentou ele para mim há algum tempo no Facebook, perguntando se eu poderia escrever esse prefácio. E hoje me sinto honrado de ele ter pedido. E feliz de poder dizer: não conhecia, felizmente, nunca tinha lido nada igual. E isso é só o começo.

Santiago Nazarian

11/10/2013


FRANKFURT

Tava bem quietinho para não passar por ressentido e invejoso - coisa que assumo que sou, como tantos; não sou é hipócrita. Mas não me aguentei lendo as notícias sobre a Feira de Frankfurt...

Primeiro se questionou muito a seleção dos autores. A organização da feira se queixou da falta de negros. Paulo Coelho se queixou da panelinha - dizendo que conhecia só uns 20 (!) autores e listando uma série de escritores nitidamente comerciais (Raphael Dracon, André Vianco, Thalita Rebouças, Felipe Neto!) que deveriam ter sido convidados. Assim, ele cancelou sua participação - e muitos apontam que foi questão de ego, por ele não ter recebido papel de destaque. 

Eu, sinceramente, achei boa a seleção oficial de autores. Havia um bom equilíbrio de autores comerciais (como o próprio Paulo Coelho), autores premiados e novos nomes importantes. Claro que lamento não estar no bolo - mas achei uma seleção mais válida do que a da Granta, por exemplo, que foi assumidamente cartas marcadas. (O que ficou claro quando a publicação pediu que autores selecionados trocassem seus textos). De todo modo, eu próprio estive em Frankfurt a convite em 2011, nas preparações do Brasil por lá, apresentei minha obra, e talvez não tenha tido o resultado que se esperava. (Na Alemanha, participo apenas de antologias, não tive nenhum dos meus romances publicados). Racionalmente eu poderia até me auto-questionar por que viajo mais do que muitos autores. Só este ano lancei livro na Espanha e estive na Feira de Madri, Zaragoza, Valladolid e Salamanca. Em dezembro estou na Feira de Guadalajara, no México - nunca publiquei por lá. 

Mas o que me atravessou mesmo foi o discurso de Luiz Ruffato, na abertura. Apesar de verdadeiro, é absurdamente sem propósito, não trata da literatura nacional, existe apenas para se relacionar com a literatura e a biografia DELE, que repete como sempre que "nasci pobre, filho de pipoqueiro, blablablá." 
Ele trata da literatura na primeira pessoa do singular, "Para me contrapor a isso escrevo", quando deveria estar representando todos os autores que estão lá e aqui. 

De toda forma, não me surpreendo. Apesar de ele ser um autor respeitado, pessoalmente sempre se mostrou duvidoso comigo. Não esqueço e não perdoo o fato de teu ter conversado pessoalmente com ele, uma década atrás, na época em que eu mesmo o admirava, e ter comentado que organizava em parceria com o Marcelino Freite uma antologia de contos sobre homossexualidade. Ruffato elogiou a ideia e me incentivou - apenas para meses depois lançar ele mesmo uma antologia com esse tema. Quando o questionamos sobre isso e expusemos publicamente o fato, ele lançou mão de sofismas, dizendo que antologias como essas existiam aos montes, não era uma ideia inédita e não poderíamos acusá-lo de plágio. Nunca expusemos a questão como plágio, mas sim como anti-ética. Se ele tivera a mesma ideia, por que não me disse nada? Por que apenas me elogiou e seguiu em silêncio realizando o MESMO projeto em menor tempo?

 Na época, Ruffato covardemente virou a imprensa contra nós, em especial contra mim, autor em início de carreira, que não poderia competir com o respeito e prestígio que nutria um autor como ele, premiado, com cara de escritor de respeito, engajamentos pretensamente políticos, de origem humilde, filho de pipoqueiro, blablablá. Sou rancoroso e não vou esquecer. Hoje, quando o encontro, nem o cumprimento.

E é curioso que Ruffato - por sua biografia, aparência física, discurso, obra e orientação (hetero) sexual - se encaixe no modelo perfeito que se espera de um escritor. Já eu, nesse meio, é que tenho de vencer resistências e preconceitos.

Agora está se discutindo ele manchar a imagem do Brasil em Frankfurt. Que ele deveria ter passado uma imagem mais positiva. Para mim não é esse o ponto. Ele aproveitou o momento para expor novamente o engajamento DELE com as minorias, e os outros, como sempre, é que se danem. Espero que AGORA as pessoas comecem a perceber isso. (Texto integral, tirem suas conclusões:

Enfim, eu não vejo é a hora que essa feira acabe, porque só se fala nisso, e está impossível de trabalhar com editores, agentes, traduções e publicações todas só voltadas para a Alemanha. 

Aqui, a vida continua. Medonha como sempre. 


09/10/2013

DAS POSSIBILIDADES ESCRITAS

"Qual dos seus livros, ou contos, você acha que daria uma série de TV?" Me perguntou um produtor há alguns meses. Eu pensei, revi meus livros, respondi: "Hum... nenhum?"

Mais do que negativar, isso reforçou em mim as possibilidades únicas da literatura. E porque eu escrevo. É para poder fazer o que não está sendo feito aí, na TV, no cinema, na literatura. E para poder fazer sozinho.

A literatura é a arte mais individual que existe, sempre digo isso; não requer consenso, bom-senso, censura ou pudor. O escritor tem todas as fichas na mão - não tem sua visão alterada por produtor, diretor, ator; mesmo o editor, que poderia ter um papel mais participativo, hoje em dia, no Brasil, raramente interfere substancialmente na obra. Editores querem livros prontos, para terem o mínimo trabalho possível, apenas diagramar e distribuir. Isso faz com que a visão expressa nos livros seja a mais particular, o que pode trazer muito mais riqueza do que uma visão coletiva.

Além disso, é uma arte relativamente barata. Não há grandes investimentos - nem por parte do próprio autor, nem por parte da editora - o que faz com que haja menores riscos. Pode-se fazer muito mais, sem medo do dinheiro perdido. Não há afinal muito dinheiro a se ganhar, ninguém está prestando muita atenção. Pode-se dizer disparates, não é preciso ser politicamente correto, você não está lidando com massas, nem com analfabetos. É possível ter mais inteligência, ironia, sarcasmo, perversidade...

A história em si já não tem custo. Não há limite de personagens, cenários, ações, explosões, efeitos especiais. Não há limite de espaço, páginas, você não precisa se encaixar numa grade de programação, num horário de sessão nem mesmo nos espaços abertos nas prateleiras. O livro tem quantas páginas o autor quer que tenha - embora algumas grossuras possam ser mais atraentes do que outras.

Se eu escrevo por tudo isso, como canalizar minha obra para o formato pré-estabelecido da televisão? Para a caretice da indústria cultural brasileira?

A história de uma mulher que se mata a cada capítulo de uma forma; sete meninos que se apaixonam por uma infanticida; memórias de animais urbanos; um colégio para monstros, só lembrando alguns dos meus livros, poderiam render séries de TV nos Estados Unidos, talvez. O Brasil ainda está impregnado de realismo, de conservadorismo, e por isso mesmo que eu preciso fazer diferente.

Produtores, curadores, o público em geral acredita que o escritor precisa ser salvo da literatura. O livro como um trampolim para uma vida melhor. O livro como um degrau para escapar dele mesmo. "Não sei  o que você planeja da sua vida como escritor, mas o mercado de roteiros no Brasil é muito promissor," me disse aquele mesmo produtor, como se dissesse: "Se ficar só nos livros, vai morrer de fome." E talvez ele tenha razão. Já colaborei com alguns roteiros de cinema, escrevi este ano minha primeira série de TV (Passionais, que deve estrear no GNT no começo do ano) e sempre é ótimo exercitar novos formatos. Mas das possibilidades únicas da literatura eu não me esqueço. O livro será sempre meu veículo.

Ainda assim, para meu próximo romance, pensei numa estrutura que facilitasse a adaptação para o teatro, para o cinema. Se a mensagem deve ser a minha, sem concessões, a estrutura poderia ser mais stage friendly. É sempre um desafio importante, afinal, tentar canalizar meu universo pessoal num formato que possa atingir o maior número de pessoas possível. Marshmallow sobre cacos de vidro.

A versão para os palcos eu já estou fazendo. Já estava na hora de eu escrever algo para teatro (apesar de - ou principalmente por - ter gostado tanto da adaptação que fizeram de Feriado de Mim Mesmo). Se há algo que eu aprendi nesses dez anos de carreira foi isso - que tenho de fazer sozinho-eu-mesmo; não posso esperar a benção de produtores, editores, manuéis da costa pinto.

Não há palco, não há aplauso, o escritor tem de se contentar com parcas resenhas, palavras de encorajamento, pouco dinheiro. Mas o importante é que ele não precisa de ninguém, eu não preciso de ninguém. E é lindo ver que eu ainda posso, eu ainda consigo, eu ainda penetro com meus dedos os seus olhos.

E enquanto eu tiver esses dedos, enquanto eu tiver vontades, você vai ter de me ouvir.


01/10/2013

AINDA O JACARÉ



Capa italiana de "Masticando Umani", já à venda por lá. 

Prosseguindo com a "Alligator Reloaded Tour", taí vídeo do Sempre um Papo, gravado em BH semana passada. Dá uma travada nos 53 minutos, mas já é tempo o suficiente. 




E aproveitando esse clima de revival reptiliano, fui ver o show do querido Daniel Peixoto, no Centro Cultural Rio Verde, aqui em São Paulo. O CD dele, lançado há dois anos, não por acaso também se chama Mastigando Humanos - eu assino a letra da faixa título, como falamos no Sempre um Papo. Há tempos que não via um show dele - acho que nunca tinha visto com banda, só Live P.A. - e Daniel sempre arrasa no palco. Levei Murilo e Marcelino, que ficaram bem impressionados. Pena que foi curtinho. Quero ver mais. 


Daniel Peixoto e os Héteros Cearenses. 

Tô agora ouvindo o CD dele, que é uma mistura louca de eletrônica, glamrock, funk e ritmos nordestinos. Acho que é o tipo de coisa que pode estourar fora do Brasil - e ele já fez suas turnês aí pelo mundo. Tô sempre na torcida por ele. 




E continuando com os amigos de talento - e continuando a morder humanos - fui ver minha amada Cléo de Páris no Sesc Consolação (teatro do terceiro andar), com Eric Lenate em Nosferatu, em texto dela mesma. Adorei. Uma coisa gótica minimalista, sussurrada, iluminada por velas. Daquelas montagens que esfregam na cara as possibilidades únicas do teatro. Quintas e sexta, até 11 de outubro. 


NESTE SÁBADO!