A Vez de Morrer é o romance que Simone Campos acaba de publicar pela Companhia das Letras. É uma espécie de retorno para ela também - que começou a publicar bem cedo, aos 17 anos, fez algumas experimentações literárias, e agora volta com tudo com um romance de fato. Talvez captando o mesmo zeitgeist que eu, ela trata da questão da fuga urbana, porém contextualiza mais pontualmente com o momento atual do Rio de Janeiro e do interior do estado. O campo de Simone (sem trocadilhos) está longe de uma integração com a natureza. Já é terreno das igrejas evangélicas, das lan houses e de relações sociais fugidias, apoiadas num escape sempre possível dos dois lados: dos metropolitanos que podem buscar um paraíso perdido, dos interioranos que já sabem que a metrópole é logo ali.
Dessa forma, A Vez de Morrer traz uma visão sócio-antropológica do campo mais complexa. É um interessante retrato do Rio de Janeiro pós "maremoto" da especulação imobiliária. E, intelectualidades à parte, o lado pop e transgressor de Simone, também sempre presente, é que tornam o texto mais atual e delicioso.
Li a prova do livro há algumas semanas e, a convite de O Globo, preparei uma entrevista para, que foi publicada semana passada aqui: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/simone-campos-rio-esta-sempre-vivendo-pequenos-apocalipses-13097422
Reproduzo também abaixo, na íntegra, com as perguntas que ficaram de fora:
SN:- Seu romance se encaixa bem numa tendência que venho observando na literatura contemporânea, da fuga urbana. Como analisa esse traço presente em tantos romances atuais e qual foi sua motivação específica para trabalhar nesse movimento?
SC: Pode parecer mentira, mas não foi algo orquestrado.
Lembro como foi surpreendente descobrir, batendo papo com a Ana Paula Maia, com
o Galera e com você, que estávamos todos escrevendo romances passados fora da
cidade grande. E quem leu os livros sabe que não estamos nos imitando. Há
muitos ângulos diferentes para se falar de fuga urbana, e cada um foi fiel ao
seu estilo.
No meu caso, me interessava por falar de natureza,
êxodo e destruição (inclusive apocalíptica). E minha família tem um sítio. Frequentando
esse sítio e seu entorno, a localidade de Araras, na serra fluminense, surgiu a
ideia de um ambiente em que elite, nova classe média e velha classe média
convivessem. Minha protagonista, Izabel, foi inicialmente inspirada na Erzsébet
Báthory, condessa húngara que se banhava com sangue de virgens. Mas esse
aspecto sádico se dissipou; ficou mais a alienação e a furtividade. Achei que
Izabel deveria começar em cima de um morro, como uma castelã, bem na dela, e
ser brutalmente arrastada à realidade de várias maneiras. Pela natureza, pela
sociedade, pela tecnologia...
- Esse êxodo urbano na literatura está longe de
ser bucólico – entretanto em seu romance notei um afastamento ainda maior do
aspecto campestre das pequenas
cidades. Seu cenário interiorano é mais suburbano (ou pós-urbano) do que rural;
talvez mais realista, focando a força das igrejas evangélicas, a
pseudoglobalização via internet, etc. Seria uma constatação da impossibilidade
dessa fuga?
O que observei na cidade real começou a aparecer
no livro. Meninas andam de skate no acostamento, há muitas igrejas, e comércios
como a lan house são comuns. O modo de vida antigo resiste e se mescla das
formas mais estranhas ao novo.
Eu juro que tentei fazer a protagonista matar
galinha, ter uma horta bonita, mas não deu. Aliás, ela tentar isso e fracassar faz
parte do livro. Ela é designer, bicho de asfalto e boate, não vai conseguir
ficar à vontade com a terra, por mais disciplinada que seja.
Há também o seguinte: a fuga para o campo bucólico
nunca foi possível. O bucólico é uma construção. Mesmo que se fuja do contato
com outro ser humano e suas maravilhas/mazelas, você vai encontrar a natureza –
amoral e implacável. O humano e suas criações é que têm penetrado cada vez mais
fundo em todas as brechas do mundo a ponto de ser difícil estar em contato apenas com a natureza. Se isso é bom?
Depende dos humanos.
- Em determinado momento você faz no romance
referência a um “apocalipse” que estaria ainda em processo. Da mesma forma,
parece retratar uma espécie de pós-apocalipse carioca, com o “maremoto” de
especulação imobiliária que atingiu o Rio e levou moradores a buscarem o
interior. Poderia se definir o romance como apocalíptico, pós-apocalíptico ou
pré-apocalíptico? Como ele se relaciona com o momento atual do Rio de Janeiro?
Meu livro começa pós-apocalíptico, mas toda hora
sobrevêm novos julgamentos que depuram os personagens. Isso porque o Rio de
verdade está sempre vivendo pequenos apocalipses. Apocalipses de esquina (uma
rua enche, um bueiro explode). Outros mais dramáticos (implosão da Perimetral,
estabelecimentos queridos fechando).
O maior apocalipse real que menciono no livro é o da
especulação imobiliária. Para quem tem a minha idade, comprar está impossível e
morar sozinho de aluguel também. Se você não mora com a mãe, não casou e não arrumou
um colega de quarto, está difícil inteirar o aluguel. No livro, que se passa em
2015, a Izabel não quer fazer nenhum dos três, e busca outra solução.
- Recentemente vi você comentando sobre a
“literatura feminina”, e parece que seu romance se encaixa nessa definição, mas
se afastando lindamente da “literatura de mulherzinha”. Sua protagonista é uma
mulher que toma as rédeas da própria (bi)sexualidade e é julgada por isso. Você
se considera uma autora feminista?
Faço questão de criar personagens convincentes,
que não façam leitores com histórico similar arrancarem os olhos e que possam
provocar empatia em quem não viveu experiências parecidas. Isso vale pra
personagens de todos os gêneros, orientações sexuais e posições políticas – e,
quem leu meus livros sabe, meus personagens variam muito.
Dito isso, este meu livro tem temas com que as
feministas vão se identificar, temas que acredito que não sejam tão comuns na
literatura nacional escrita por mulheres, do tipo revenge porn, estupro,
homofobia, falta de educação sentimental... Mas literatura engajada é um saco.
Já leu Açúcar amargo? É o ponto baixo
da Coleção Vagalume. Bem, sou feminista na minha vida, mas não como autora
(ficaria didático) e não como ativista tradicional (sou filha de mineiro,
trabalho na encolha).
- Esse traço tão ricamente feminino em seu texto
me causou certa estranheza nos momentos de mudança do foco narrativo – da
protagonista para um morador da região. Qual
foi sua intenção ao se utilizar desse recurso?
Um protagonista único favorece uma visão única,
tudo no romance fica sendo a respeito dele. Tem o oposto: conjurar uma miríade
de personagens que pode acabar diluindo o que você quer dizer. Eu gosto do meio-termo:
um protagonista e um deuteragonista que são “opostos complementares”. Fiz isso no
A feia noite, mas lá a personagem
feminina não fala muito – é para ser misteriosa. Dessa vez, os pontos de vista
independentes de Izabel e Eduardo servem para dar um panorama mais rico da vida
na região. Certas coisas não acontecem na presença de mulheres, certas coisas
não acontecem na presença de homens. E ela, por ser classe-média-antiga,
frequenta ambientes diferentes dos dele, e vice-versa. Por fim, cada um deles
contribui essencialmente para o final do livro – bem apocalíptico, como você
observou.
- Você é das autoras que começou mais cedo na
nossa geração – teve um ótimo reconhecimento logo no início, mas acabou se
afastando um pouco do cenário literário. Como se deu isso? E como se vê no
cenário literário atual?
Eu tinha 17 anos quando publiquei meu primeiro
livro, No shopping, com uma escrita
fora do padrão. Teve muitas resenhas, reportagens, fui até no Jô Soares. Eu era
uma colegial com interesses considerados esquisitos, como games, raves e
ponto-cruz. Pensei que sendo uma autora publicada me deixariam não fazer
sentido à vontade, mas não foi bem assim.
Entre 2000 e 2014 teve o boom dos jovens autores e eventos literários. Quando eu era mais
nova, não conhecia quase ninguém do meio. Na hora de escolher o que escrever ou
onde frequentar, eu ia pelo meu gosto, não pelo que me deixaria mais em
evidência. Se o evento literário tivesse algum amigo, e fosse barato, eu ia. De
resto, preferia outras paragens, outras baladas. As pessoas me esqueceram um
pouco. Aproveitei para acumular experiências e saberes. Publiquei três livros. Fui
à Flip pela primeira vez em 2010 – quando deu vontade. Hoje tenho amigos de
verdade no meio literário, e eles foram essenciais para me atrair para fora da
toca.
Isso está no A
vez de morrer, de certa forma – o quanto Izabel é sozinha e só percebe isso
quando vai para a cidade pequena, e na convivência ela começa a enxergar de
fato os outros.
- Sua prosa é bastante sofisticada, e ao mesmo
tempo em que você dialoga com a academia, abusa de referências de cultura pop,
filmes e videogame. Como analisa seu projeto literário?
Sempre foi assim para mim. O pop e o erudito se
mesclavam sem problemas. Eu jogava Tomb
Raider e lia Dostoiévski na mesma tarde. Na hora de escrever, isso se
traduziu em referências. Sempre tento tornar a cena boa independentemente de o
leitor conhecer a referência; ela só dá um sabor extra.
Meu primeiro livro era bem experimental e
fragmentado. Passei três livros depois dele aprimorando o estilo. O conto Bondade, naquela coletânea 25 mulheres organizada pelo Ruffato, foi
um marco, pois percebi que eu poderia contar uma história mais inteligível sem
“me vender”. Passei a escrever textos claros que pudessem ser lidos em mais de
um nível.
Quem olha o conjunto dos meus livros pensa: que
diabos essa menina está fazendo? Escrevi até um livro-jogo safado para maiores.
Cadê o “romance normal”? Acho que estava faltando um, que é o novo, A vez de morrer. Mas não pretendo parar
de experimentar.
- Por fim, como analisa o momento atual da
literatura brasileira?
Estou muito animada com ele, confesso. As
primeiras “obras maduras” dos velhos “jovens autores” estão saindo agora, e eu
tenho lido e me empolgado com a maioria (o seu Biofobia e o F, do
Antônio Xerxenesky, por exemplo). Nem tudo são flores, mas os autores estão se
desvelando em contar histórias, uma arte muito básica que ficou de lado um
tempo, talvez por um orgulho hipster milenial de “não precisamos mais contar
histórias tradicionalmente” – e tenho uma parcela de culpa nisso. Mas estou (estamos?)
trabalhando para reverter esse quadro.