12/09/2014

HOJE NÃO PODEMOS VOLTAR SOZINHOS


Estes dias meu mural do FB foi tomado por fotos de um menino morto, jogado no mato, pescoço virado, uma bola de papel na boca. "Vamos acabar com essa praga", alguns veículos noticiaram ser literalmente a mensagem escrita no bilhete. Outros desmentiram que a bola de papel contivesse qualquer texto. Não importa, a mensagem é a mesma. Morreu por ser homossexual, desprotegido, estar sozinho.

A imagem me causou impacto, até repulsa, e contesto se deveria ser exposta assim. Talvez tenha seu valor de chacoalhão. Eu prefiro mostrar como João Antonio, 18 anos, era um menino bonito, que podia ser seu filho, amigo, irmão, namorado.

Acompanho com curiosidade e receio as redes sociais. Acho que a diminuição da miséria, a "ascensão da classe C" no Brasil tem o lado miserável de ter se dado apenas pelo consumo, sem o mínimo investimento em educação. Basta ler os comentários de qualquer grande matéria, qualquer vídeo popular do Youtube que se constata o nível baixíssimo, tanto da gramática quanto das ideias, que foram formadas (ou "incutidas") pelo único livro conhecido (não exatamente lido) pelo brasileiro médio: a Bíblia.

Nas matérias sobre João Antonio e no próprio perfil dele no FB, os comentários têm sido de solidariedade, tristeza, compaixão. "Você agora é um anjo no céu", muitos dizem. Bem, sentimos muito, mas não será. Se tivermos de acreditar piamente na Bíblia, João Antonio está queimando no fogo do Inferno, assim como quase todos nós estaremos.

A solidariedade surge agora que João Antonio está morto. Se tivesse "apenas" apanhado e postado uma foto, um vídeo dele mesmo contando a agressão, a situação seria bem diferente, acredite. Aconteceu com o estudante André Baliera, vítima de um ataque homofóbico na Henrique Schaumann (SP) há dois anos. O vídeo dele contando o caso no YouTube recebeu centenas de ataques, no tom de "viadinho tem mesmo de apanhar para virar homem".

Antes esses ataques ficassem só na palavra, só na rede, só em homofóbicos isolados que se sentem protegidos pelo anonimato.

Esses ataques acontecem todo, todo dia. Outro jovem sobrevivente vítima de homofobia, Dawan Bueno, que foi atacado recentemente no Paraná, deu uma declaração que sintetiza tudo: "Todos os dias, eu acordo já sabendo que vou ter que enfrentar algum tipo de preconceito. Já faz parte da minha rotina. Para mim, é tão certo quanto acordar, lavar o rosto e escovar os dentes."

Qualquer menino um pouco mais diferente, um pouco mais delicado, tem de crescer com apelidos, agressão e segregação na escola. Um pai que abraça o filho pode ter a orelha decepada por ser confundido com um homossexual. Há dois anos, em Florianópolis, um amigo teve uma crise forte de dor (que acabou se revelando leptospirose) e eu o ajudei a caminhar de volta até a pousada. Durante todo o trajeto ouvimos gritos e xingamentos por estarmos de braço dado; se ele não morresse de dor, poderia morrer por intolerância.

Por essas e outras que a lei que criminaliza a homofobia precisa ser aprovada. Por essa e outras é que é uma lei que beneficia a todos, héteros que abraçam os filhos, gays que andam de mãos dadas, meninos que tentam voltar sozinhos para casa... O problema não é "do outro". Os homossexuais não são "os outros". O problema será seu quando você for confundido com um gay, quando seu filho for gay (ou confundido), seu neto, quando você perder o emprego por seu chefe ser confundido com um gay e ser assassinado, que seja.

"Ah, mas lei contra agressões e assassinatos já existem, não é preciso se categorizar como homofobia", é um bom argumento levantado por muitos. Mas a lei contra a homofobia transmite um exemplo de que é errado discriminar, e esse exemplo pode diminuir o número de assassinatos, certamente diminuirá o número de agressões, humilhações, demissões, suicídios...

Os fundamentalistas que "não têm nada contra os homossexuais, mas..." nunca levam isso em conta. Acham que é uma questão que se restringe aos gays "que dão pinta" e que "se quer dar o cu, seja discreto e faça isso entre quatro paredes". Acreditam que homossexualidade é "opção" e "sem-vergonhice", como se os homossexuais mais afeminados (ou os héteros afeminados, que seja) quisessem é causar escândalo. Esse pensamento é tão forte que ecoa em grande parte dos homossexuais, que não conseguem entender as diferenças inerentes - gay tem de ser másculo, malhado, no armário.

Racismo é crime. A sociedade toda se choca com um jogador chamado de macaco. Você pode concordar com o xingamento, mas tem de ficar quietinho, na sua; essa foi uma conquista que os negros tiveram após anos de luta. Ninguém pode esconder sua cor (bem, talvez só o Michael Jackson...), mas o menino negro não está sozinho. Ele tem a família. Ele cresce entre iguais.

Ninguém pode nem deveria esconder sua sexualidade. E é preciso comprar essa briga, mostrar a cara, mostrar que esse menino gay não está voltando para casa sozinho.



Termino com o ótimo vídeo do Põe Na roda, que fala muito do que acredito. 



MESA

Neste sábado, 15h, na Martins Fontes da Consolação, tenho uma mesa com o querido Ricardo Lisias . Debateremos (e relançaremos) os livros la...