David Carr é um jornalista americano que passou grande parte dos anos 80 chapado de álcool, crack e cocaína. Quase morreu algumas vezes, teve gêmeas prematuras, perdeu a guarda das filhas, recuperou a guarda e teve de criá-las em meio ao vício e reabilitação. Sobre tudo isso ele pouco se lembra. Então usou sua técnica de jornalista para investigar sua própria história, entrevistar amigos e familiares e remontar os anos perdidos no livro A Noite da Arma (Record).
A ideia é ótima, o resultado é regular.
Relatos de viciados geralmente têm uma carga romântica; mesmo expondo toda as mazelas, têm algo de sedutor, seja na ficção (vide Welsh, Brett Easton Ellis, JT. LeRoy), seja nas biografias (Basketball Diaries, Christiane F, Mayra Dias Gomes). Talvez seja pelo flerte com o perigo, com um universo paralelo, um esporte radical.
Carr parece ciente disso e, em determinada passagem, recomenda que um viciado em reabilitação "evite escrever ou ler biografias de viciados". Talvez seja por isso que seu livro seja desprovido de qualquer romantismo e pinte um retrato mais patético - talvez mais verdadeiro, porém menos interessante. É a história de um pai de família bêbado, drogado e acima do peso, nada glamuroso, que embora tenha caído no tráfico e se envolvido com gente barra pesada parece nunca chegar realmente ao submundo: vivia com razoável conforto (e nunca com luxo), tinha grandes amigos "da noia" e do tráfico, não caiu nas ruas, na morte, na prostituição.
Assim, A Noite da Arma se torna uma grande reportagem, mas carece de poesia para ser um grande livro. Pode ser uma visão bem pessoal minha, mas é daquelas leituras em que a ficção faz falta. Mesmo a memória falha do protagonista, que podia render histórias conflitantes, duas versões para um mesmo fato, é explorada timidamente sem grande ambição estilística. Porém se a intenção dele era criar (mais um) "alerta sobre o perigo das drogas", funcionou.
E me fez repensar em minhas próprias experiências, minha postura em relação à legalização...
Eu já usei maconha. E cocaína. E crack, ácido, ecstasy, speed, mdma, ketamina, álcool, noz moscada, cogumelo... que eu lembro é isso. Não me arrependo de nada. Muitas das melhores sensações que tive na vida foi com drogas. As piores também. E o mais perto que posso dizer que cheguei do vício, como tantos, foi com o álcool. Ainda bebo. Não uso mais nada - além de uns pegas eventuais de maconha entre amigos - há mais de dois anos. Não diria que jamais farei novamente, mas hoje em dia minha ressaca é tão pesada, passo tão mal que não vale mais a pena. Parei por isso, não valia mais a pena, não tenho mais prazer, a diversão, só noia e ressaca. Não tenho mais idade para isso.
Lembro há alguns anos, na Colômbia (ou Peru?), eu tinha uma mesa na feira do livro no dia seguinte e uma das mocinhas da organização me ofereceu cocaína. "Nah, minha ressaca é terrível, vou estar destruído para a mesa amanhã". Ao que a menina contestou: "Isso é por causa da cocaína brasileira, a daqui é que é boa." Pior ainda. Haha. Fui sensato e recusei educadamente.
As drogas me deixaram sequelas, acho. Em algumas questões, tenho uma memória lesada, lesada, num ponto quase clínico, (às vezes clínico), mas até aí, é meio genético, minha família toda é assim. Reconhecer pessoas é um problema para mim (me identifiquei tanto com o protagonista de Barba Ensopada de Sangue...). Eventualmente, tenho ataques de ansiedade - começo a hiperventilar, o cérebro sobrecarrega. Amigos queridos já me ajudaram bem; tenho um episódio patético-hilário de uma crise que tive de madrugada, liguei para vários amigos, para um menino que estava ficando. O Santo Alê Matos veio até aqui para cuidar de mim - quando o ficante chegou eu estava deitado com Alê sentado na cama e pude usar a sério a frase: "Não é o que você está pensando..."
Ainda assim, não me arrependo. Foi minha escolha, pude conhecer outro lado da vida que, apesar de tudo, valeu a pena.
Hoje sinto que tenho várias faculdades mentais prejudicadas. Mas, provavelmente, muitas outras evoluídas. E se eu não houvesse passado pelo que eu passei, não haveria graça em contar a minha história. (...) É preciso perder alguns neurônios para que os neurônios sobreviventes se esforcem mais. Esquecer os nomes dos pais, para recitar os poetas franceses. Contanto que eu não perca minha censura, tudo do que eu me lembrar pode ser usado a meu favor.
Concordo que poderia ter sido diferente, eu poderia ter seguido outros caminhos e não ter me lesado tanto. Mas vai saber o que uma simples friagem não pode fazer em mentes demasiadamente protegidas, ou o efeito tóxico da noz-moscada na comidinha caseira, ou o lapso permanente — a paralisia cerebral — provocada ao se dizer Pecan Pie num quarto de hotel. Se a destruição é inevitável, que ao menos seja saborosa.
(de Mastigando Humanos)
Não recomendo - não hipocritamente porque quero me resguardar do crime de "apologia", mas porque tenho plena consciência de que é uma roleta russa. Eu poderia ter morrido, poderia ter me viciado, poderia ter sido preso e me expus a vários outros riscos e perigos. Tive sorte. Tenho mais lembranças boas do que ruins, mas meu corpo já deixou claro que não dá mais. Não faça isso em casa.
Daí chegamos à questão da descriminalização. Meu lado anarquista diria: que se legalize tudo! Mas pensando bem não é assim. Nunca me viciei, um pouco por determinação, um pouco por sorte, muito pela própria proibição, o acesso restrito que dificultou um uso mais regular. Essa proibição impede também que as pessoas se exponham tanto publicamente e coloquem a si mesmo e a outros em risco quando alteradas. E num país miserável (em todos os sentidos) como o Brasil, seria catastrófico tirar a questão moral e legal das drogas e deixar a população louca pelas ruas.
"Mas o álcool..."
O álcool já é um grande problema. Não podemos usar isso para criar outros. Talvez seja o contrário, a legalidade do álcool é uma forma de coibir outros males.
"Mas a maconha..."
Tá, é disso que estamos falando. Acho que ninguém defende realmente a descriminalização da cocaína, do crack. A questão é maconha. Então não vejo porque não legalizar - é um mal, mas daí é um mal menor do que o álcool, talvez do que o cigarro.
Eu pessoalmente não gosto. Fumo e fico fechado, tenho lapsos de tempo, fora minha memória lesada... Mas não dá para acreditar que a população chapada iria sair matando por aí, batendo em suas esposas, votando no Bolsonaro... E a maior "porta para as outras drogas" é o álcool. O álcool...
Assim, refletindo bem nos últimos dias cheguei a uma posição previsível: sim à descriminalização (finalmente consegui escrever essa bagaça sem o corretor apitar) da maconha; não ás outras drogas. Não vai resolver todos os problemas - nada resolve todos os problemas, isso é existencial - nem vai acabar com o tráfico, mas é um movimento sensato e, acredito, com saldo mais positivo do que negativo.
Sentado no vaso, pensava nas possíveis consequências. Puta merda, amanhã ele estaria um caco, mas isso era algo que ele precisaria aceitar. Ele estaria um caco de toda forma, talvez em menor grau se não cheirasse, é verdade, mas o que valia eram os momentos de euforia daquela noite. Não poderia passar outra noite miserável. Não, não havia nem o que considerar. O amigo já estava lá, separando as carreiras, e aspirar era inevitável, já não era uma escolha; ele tinha apenas de se concentrar nos aspectos positivos. Levantou-se, deu descarga e se viu sorridente na frente do espelho. Os dias serão todos miseráveis de qualquer forma, o que importa é que ele ainda tinha uma noite para aproveitar...
(de BIOFOBIA)
2002 na Europa foi um ano intenso...