29/03/2017

GANHAMOS NOLL


(João Gilberto Noll, 1946-2017)

Perdemos Noll. Acordei nesta quarta com mensagens me contando, Rodrigo Casarin do Uol me pedindo um depoimento. Ele foi encontrado morto em sua casa noite passada - sem maiores detalhes.

Com João Silvério Trevisan

Ele era o maior de todos. Vivi a obra dele. Conheci da melhor maneira, acho, quando me mudava para Porto Alegre, em 2000, lendo "Rastros do Verão", novela sua de 1986, encontrando a cidade muito como o personagem do livro. Andava pelas ruas com meu namorado da época, procurando os cenários descritos no livro, o prédio amarelo de três andares na rua Riachuelo...

Anos depois percebi que eu estava chegando a algum lugar quando dividi a primeira mesa com ele. Nos conhecemos num jantar em São Paulo, na casa da agente dele, Marisa Moura, em 2005. Não pude deixar de me assumir como fã, contei que "Meu Amigo" era meu conto favorito de todos. Ele me olhou com aquele olhar perdido e disse: "Sabe quem nem me lembrava desse conto? Mas você falando agora, acho que é o meu também..."

Com Moreno Veloso, em Buenos Aires. 
Nos encontramos mais meia dúzia de vezes depois disso; mediei uma mesa com ele na Balada Literária em 2009, dividimos outra com Moreno Veloso no Malba em Buenos Aires, em 2011; entrevistei-o para a revista Simples; e ainda tivemos uma noitada bebendo nas sarjetas em Ouro Preto, em 2013. 

Ouro Preto. 

Quando me mudei para Florianópolis, em 2010, passei antes em Porto Alegre, e o encontrei por acaso caminhando pelas ruas do centro, lá perto da rua Riachuelo, achei um bom presságio...

Acho que nosso último encontro foi aqui em São Paulo, em 2015, almoçamos eu, ele e Marcelino no Ritz (onde tiramos a foto que abre este post). 

De longe é o autor brasileiro que mais me influenciou. Por ser o primeiro que li, "Rastros do Verão" é seu livro que mais me marcou, mas tem ainda "Hotel Atlântico", "Lorde", "Acenos e Afagos", difícil escolher; tenho as obras completas, quase todas autografadas. 

Com nossa editora na Record, Lívia Vianna. 

"O Meu Amigo" é um conto de seu primeiro livro, "O Cego e a Dançarina", que também é meu livro de contos favorito da vida (seguido por "Paraísos Artificiais", do Paulo Henriques Britto). Qualquer um que conhece razoavelmente minha obra pode identificar a influência desse conto (e do Noll de maneira geral); a ambiguidade sexual, o tom falsamente juvenil; a maneira de falar do amor transbordando de ódio. 

Livro juvenil dele ilustrado pelo Alexandre Matos. 

Gosto de pensar que eu tê-lo lembrado desse conto possa ter gerado "Sou Eu", novela juvenil dele de 2009, ilustrada pelo meu irmãozinho Alexandre Matos (que já tinha ilustrado meu "O Prédio, o Tédio e o Menino Cego"), e que tem muito do clima do conto...

Com Alê. 

Mas melhor do que falar sobre o conto, melhor do que qualquer lembrança que eu possa ter do Noll é dividir um pouco da literatura dele, para quem não conhece. Transcrevi na íntegra esta manhã o melhor conto, do maior de todos, "Meu Amigo", do João Gilberto Noll.






O MEU AMIGO

O meu amigo tinha os olhos omissos, olhava tudo mas não via nada. Eu lhe perguntei: você conhece a piada do Adamastor? Ele respondeu que não, que não queria saber de piada nenhuma, muito menos a do Adamastor. Ele me irritava. Eu faria onze anos no dia seguinte e não quis convidá-lo. Você é mau, eu disse. Ele não se inquietou com essa afirmação, continuou como sempre tinha sido: mau. Até que gritei, reage, diz alguma coisa, faz alguma coisa, não fica aí plantado feito uma coisa sem sangue. Eu não gostava dele, eu odiava ele. No entanto não ficava um dia sem vê-lo, ia pra beira do lago onde ele costumava ficar as tardes inteiras ruminando um silêncio nojento. Eu ficava falando sozinho porque ele fazia tudo pra não me ouvir. Filho da puta. Ele não ouvia, ele não ouvia nada. Nem sequer me olhava. Permanecia horas inteiras olhando pra água do lago, mudo, cedo, surdo. Imbecil. Ele era um pouquinho mais velho do que eu mas já tinha uns fiapos em cima do lábio, coisa que me irritava a ponto de eu sonhar com esses fiozinhos. No sonho eles apareciam sobre o nariz dele – imagem tão grotesca que eu me finava de rir e me acordava mijando de rir na calça do pijama.
                Uma tarde choveu muito forte e mesmo assim nós dois não arredamos pé da margem do lago, encharcados e lambuzados de barro, de folhas de plantas, de um tédio pastoso. E ali ficamos até as sete horas da tarde. Final do verão e das férias, as bicicletas deitadas sobre a grama. Eu tinha um horror dele, desejava a sua morte repentina, sem lhe dar chance de recuperar um único suspiro. Mas na época eu não sabia que desejava isso, eu achava apenas que não queria mais vê-lo nunca mais. Ele me desprezava. Eu nunca entendi por quê. Eu gostava de entrar no lago, fingir que nadava, mas ele não encostava na água. Ele ficava na margem e quando eu ficava de costas eu tenho certeza de que ele me olhava, a minha nuca se arrepiando, o sol indo embora. Quando eu virava pra ele ele estava olhando para o céu escurecendo. Canalha, eu dizia em silêncio. Não havia mais ninguém no mundo, só a indiferença dele, aquele desprezo vindo de uma região escura do seu caráter, coisa de gente ruim, perversa. Acho que a marca mais visível de sua superioridade era a cicatriz que ele mantinha na face esquerda em segredo, sem jamais revelar sua origem. Uma luta de punhais? E de que adiantaria perguntar? A minha mãe achava ele muito esquisito, isso não é amizade pra você, um menino que não fala, não dirige os olhos a ninguém.
                De concreto eu sabia apenas que ele vivia sozinho com a mãe, que o pai tinha fugido com uma mulher de maus costumes. A mãe não saía de casa, diziam que louca. Algumas línguas mais afoitas comentavam que ele era um bastardo, filho apenas do pai desaparecido e que mantinha relações inomináveis de tão escusas com a mulher com quem vivia. Mas a verdade é que nunca ninguém entrou no quarto em que os dois viviam fazia treze anos, na Pensão Paraíso. Para alguns, essa mulher jamais poderia ser sua mãe porque era uma japonesa, eu não sei, eu nunca a vi, mas sei que esse negócio de chamar qualquer pessoa com traços orientais de japonesa é coisa de quem não sabe distinguir um japonês de um chinês, ou de um coreano, ou de um vietnamita. Dizem que ela era linda, pele lisa como porcelana, dizem os mais poéticos que ninguém poderia dar a sua idade, uma mulher irreal. O que chamavam de loucura seria essa sua beleza? E por causa dessa mulher tão misteriosa eu o invejava do mais fundo de mim e desejava a sua morte cada dia com mais convicção. E mais o invejaria se descobrisse que essa mulher não passava de imaginação da cidade, que essa mulher nunca tinha existido, que essa mulher tinha nascido do mistério dele. Se ele fosse um menino sem mãe ou sem nenhuma mulher e vivesse na mais miserável das solidões eu mais o odiaria. Se ele fosse um ser que tivesse vindo do nada e que vivesse para nada eu era capaz de afogá-lo no lago para sempre, e tenho certeza de que a cidade inteira ficaria satisfeita e fingiria ver no afogamento apenas um acidente e eu seria o agraciado com uma eterna gratidão por ter sido o transmissor da notícia, diria para o padre Eusébio, para o prefeito, para o delegado, e ninguém iria procurar o corpo argumentando que o lago é muito perigoso, arriscado alguém descer nas profundezas daquelas águas, e alguns dias depois o corpo apareceria nas margens todo comido por peixes vorazes e a cidade dramatizaria um olhar de luto e acorreria ao enterro para chorar o que no fundo era um festejo.
                Mas eu não o matei. E aconteceu o imprevisto. Eu chorava na beira do lago por me sentir um covarde, por não conseguir a coragem. Eu o esperava ali havia três horas. Até que apareceu um negro alto e corpulento, completamente desconhecido, caminhando displicente pela margem do lago. Perguntei as horas para ele e ele respondeu que tinha fugido do hospício de Lagoassim, uma cidade vizinha, e que agora iria caminhar pelo mundo até morrer. Até morrer? – perguntei. Até morrer – respondeu. E ficou um silêncio turvo. E como ele tinha um olhar de louco, para quem a gente poderia contar qualquer segredo comprometedor porque se ele o revelasse ninguém acreditaria, contei para ele toda a história do meu plano de assassinato, contei tintim por tintim do meu ódio daquela pessoa que estava custando a aparecer naquela tarde. Eu falava cuspindo na areia e nas pedras, eu cuspi tanto que cheguei a escarrar uma gosma de sangue, e o olhar do homem arregalava-se a cada palavra minha, e sua boca abria-se lentamente de um prazer insuportável e a sua expressão era de um homem em vias de encontrar sua missão, e o céu arroxeava-se, moía nuvens, pesava como prestes a desabar. E o homem disse eu tenho uma corda aqui no bolso, com essa corda é mais fácil de matar ele do que dentro do lago, e o homem tirou a corda do bolso e me mostrou e me deu ela e minha mão segurou ela como quem segura um negócio precioso, e ele tirou a corda da minha mão e disse é assim ó, é assim que se estrangula, quer ver? e foi enrolando a corda em volta do meu pescoço e eu disse eu quero ver, me mostra, me ensina pra quando aquele monstro chegar eu estar preparado, me ajuda eu gritei. E ele apertou com uma força brutal as duas pontas da corda e eu senti o primeiro pingo d’água cair do céu e entrar na minha boca. 




NESTE SÁBADO!