10/11/2018

MASTIGANDO HUMANOS (2006)


A capa original, minha e do Marco Túlio, de que ainda gosto muito, porque parece um chiclete. 


Eu fiz uma longa viagem para chegar até aqui. Não nasci em berço de ouro para depois ser jogado na privada. Nem fui criado às margens desta poluída cidade. Tive uma infância e adolescência ordinárias, como a maioria da minha espécie, e talvez tenha até demorado um pouco para seguir meu próprio caminho, mas não demais. Afinal, os caminhos abertos a nós sempre foram abertos por outros, não são nossos, real ou exclusivamente. Assim, enquanto minha juventude ainda fluía intensa pelas correntezas, deixei que ela me levasse e eu seguisse o seu chamado. Poderia lamentar ter desaguado num esgoto, mas, como todos os jovens, sempre quis provar o gosto dos subterrâneos.



Entre 2003 e 2006 eu havia lançado três livros com grande repercussão, ótimas críticas e começava me estabelecer como escritor.


Pânico! Morte! Carnificina! Não, este não é um filme trash. Esqueça tudo o que você sabe sobre a lenda urbana dos jacarés nos esgotos das grandes cidades. Agora é hora de ver o lado cômico dessa história. Em seu romance mais ousado, Santiago Nazarian nos traz um jacaré urbano, frustrado e existencialista, que sua sua bocarra não apenas para mastigar, como para dissertar sobre sua infeliz condição de réptil que perdeu o reinado sobre a Terra. Convivendo com ratos autoritários, sapos boêmios, tonéis sedutores e outros seres absurdos, ele procura seu lugar na metrópole, logicamente sempre tentando comer alguém. Nesse caldo estão referências tão díspares como música brega, literatura gótica, ciências biológicas e alta gastronomia com pitadas apimentadas de um erotismo animal. "Mastigando Humanos" é um livro para quem tem trauma da escola, mas sobreviveu ao underground. Um romance hilário, apetitoso, onde contestação adolescente e ideais filosóficos fluem pela veia sarcástica de Nazarian. - Sou bom nas oreia, diz aí?


Depois de toda a carga sorumbática-mal-de-século dos anteriores, resolvi experimentar algo mais pop, aproveitar o que me restava de “jovem escritor” e investir em algo realmente diferente, sem medo de abraçar a “literatura pop”.



Foto para Joyce Pascowitch na época do lançamento. 

“Mastigando Humanos” foi em grande parte escrito no prédio da Editora Abril, em São Paulo. O (saudoso) poeta Donizete Galvão me arrumou um frila por lá, cobrindo licença maternidade no departamento de marketing. Na teoria, eu faria textos das malas diretas para assinantes. Na prática, não fazia praticamente nada. Passava dias e dias sentado no computador, das nove às seis, sem um único job, ganhando um bom salário. (Não me surpreendi nada então quando a editora começou a quebrar). Aproveitei para escrever. E o livro levou um tempo, basicamente uns dois anos, entre 2004 e 2006.

O percurso do jacaré que sai de uma vida confortável para conhecer o underground, é levado para a universidade, mas quer seguir uma vida mais de artista maldito do que de acadêmico é basicamente o meu percurso. Escrevi num fluxo de consciência, sem o menor planejamento, procurando sempre superar nas bizarrices – depois que você faz seu personagem se apaixonar por um tonel de óleo, para onde você vai?

Santana, um velho tonel de óleo, sim, foi minha primeira paixão. Não... estou exagerando, não diria que foi uma paixão, tenho sangue frio, mas foi, digamos, uma... fisgada, uma fisgada irresistível. Foi quando meus hormônios masculinos se manifestaram pela primeira vez. Quando eu esqueci meu estômago e me dei conta de detalhes mais proeminentes da minha anatomia. Vocês devem estar rindo, se perguntando: “Que diabos ele espera de um tonel de óleo?”. Ora, mas o que todos os homens esperam das mulheres? O que os homens esperam das mulheres? Apenas que se abram, ranjam, deem abrigo e espaço, espaço para eles entrarem. Um túnel de carne quente para descansar. Para mim, um túnel de paredes frias para o mesmo. Foi isso o que senti por ela: vontade de penetrar, conhecer melhor suas formas arredondadas, o brilho de seu casco, seu ranger sob meu peso, nós dois a rolar. Talvez fosse sua ferrugem, como escamas, talvez seu ferro dentado. Só sei que ela tinha o suficiente para que um macho da minha espécie se sentisse atraído, embora um pouco culpado, confesso eu.

Imagine nossos filhos, pequenas latinhas de refrigerante, jogando futebol com os meninos de rua, fazendo a fortuna e a felicidade de catadores de alumínio. Magrinhos e amassados. Gordinhos e cheios de gás. Ah-há! Não sou bobo, ora, não sou tão irracional assim. Sabia que éramos seres de espécies diferentes, que meu desejo não era totalmente normal, nem poderia ser correspondido e procriar. Eu também nem tinha desejos tão paternais assim. Mas, mesmo assim, não podia evitar o que sentia. E sentia vergonha, por ela não ser exatamente o que eu esperava. Por ela não ser exatamente o que eu queria, embora eu quisesse, quisesse conhecê-la melhor. Esperava encontrar uma fêmea jovem, jacaroa. Alguém com os olhos nos meus olhos e os dentes de minha mãe. Santana não era assim, tinha dentes de ferro. Tinha um corpo mais redondo, maior, um estômago faminto, mais faminto do que o meu. Velha e enferrujada, bêbada e despejada. Tratando-me com a indiferença de que só uma lata velha é capaz. Sangue mais frio do que o meu. Uma espécie mais incompreendida do que a minha. Oh, talvez tenha sido isso o que me atraiu, o elogio aos perdedores. A piedade se manifestando como compaixão, paixão, o inverso da inveja. Alguém que não pode desafiar você, alguém que não lhe oferece perigo, nem concorrência. Alguém para você exercer sua força, seu peso, sua masculinidade... Ah, todos os machos querem morder a mesma coisa, independentemente do apetite...


Mergulhei profundamente nas referências explícitas e citações, que eu tinha evitado nos anteriores para formar um universo próprio-contido. Tem muito de música kitsch, filmes trash, cultura pop em geral - e os nomes dos personagens foram todos tirados de estações de metrô, primeiro de São Paulo (Santana, Braz, Vergueiro), depois de Paris (Gongourt, Voltaire), depois de Londres - cidades que foram cruciais para minha formação. As ilustrações foram uma busca de ressaltar esse caráter – convidei um garoto de Ribeirão Preto, o Marco Túlio Reis, que eu nunca tinha encontrado pessoalmente, cujo trabalho conheci por fotolog, para fazer ilustrações como ícones de pop-art, com frases emblemáticas do livro.

Uma das ilustrações do livro que virou convite físico - na época em que editoras faziam isso. 

A ideia era que saísse novamente pela Planeta, e eles ofereceram um contrato, mas sem muito entusiasmo. (Meu editor original) Paulo Roberto Pires já tinha saído de lá e o novo editor disse explicitamente que não tinha gostado do livro, apesar de topar a publicação. Recebi proposta de mais duas editoras, sendo uma delas a Nova Fronteira, com quem eu já trabalhava como tradutor, e que ofereceu literalmente o dobro da outra (e que é basicamente o mesmo valor que recebo até hoje, sem correção).  Lancei por eles no segundo semestre de 2006.

A foto de orelha - uma ideia bem sem noção minha, confesso; eu babando iogurte. Foi feita novamente pelo Luciancencov.

Vale colocar aqui que nesses livros todos nunca tive um trabalho de edição, um editor que lesse e sugerisse ponto a ponto mudanças. Os livros todos saíram praticamente como entregues – apenas com uma revisão (muitas vezes desleixada). Só fui ter trabalho de edição mesmo nos mais recentes, BIOFOBIA e Neve Negra. Eu costumava dizer que conversava muito mais com a assessoria de imprensa do que com os editores, e não era nada exagero.

A Nova Fronteira fez sim um belo trabalho de divulgação. Lembro da assessoria me ligando com algo do tipo: “Amanhã  às dez está marcada entrevista no Globo, às onze na CBN, às 14h com a Folha.” Pagava almoços com jornalistas.  Um trabalho que nunca vi igual. E funcionou.


O lançamento em SP foi lotadíssimo, saiu em tudo quanto é lugar e teve um coquetel de carne de jacaré, presente do Pazetto. 

O livro saiu em tudo quanto foi lugar, dos cadernos literários, Bravo, Rolling Stone a Programa do Jô novamente, Adriane Galisteu, MTV e Fala Mais Joga. Acho que a única crítica negativa foi do Alcir Pécora. O Globo não só deu capa do Segundo Caderno como duas páginas INTEIRAS. Zero Hora também deu chamada na capa. Eu dava entrevistas e fazia fotos com roupas de estampa de réptil. Levava a sério essa ideia de escritor como popstar...

Mais uma entrevista no Jô, com camiseta de estampa reptiliana. Foi fraquinha, curta, e passou muito tarde.
No ano seguinte fui eleito “um dos jovens escritores mais importantes da América Latina”, pelo prestigioso Hay Festival, que criou o “Bogotá 39”, e viajei muito por Colômbia, Argentina, Peru, Venezuela, Espanha. No Brasil, sem surpresas, o livro não foi finalista de nada.

O convite virtual. 

Foi o auge do meu hype e posso dizer que aproveitei – ahhh, aproveitei. Era a era dos emos, e me alimentei muito deles. Com um apetite como o do meu jacaré, eu não saía de um lançamento sozinho – pegava leitores, curadores, jornalistas . Confesso que abusei e fui bem escroto com gente querida, acho que pra compensar minha longa fase de viadinho sofredor. Mas já paguei os meus pecados.

Anúncio que eu e Marco Túlio fizemos pro metrô, mas que a editora não chegou a investir. 

Também foi meu livro que mais vendeu, foi comprado pelo governo (PNBE), foi adotado em escolas (hoje em dia seria impensável), se tornou até leitura de vestibular (na Paraíba). Infelizmente a Nova Fronteira entrou numa crise, foi comprada pela Ediouro e tive de rescindir contrato com eles. Mas levei o livro em 2013 para a Record, e ainda se encontra em catálogo por lá. No final, toda a repercussão que o livro teve foi muito surpreendente. 

A capa mais recente, da Record, feita com o irmãozinho Alexandre Matos. 

Para a nova edição, revi todo o texto, melhorei um pouco, piorei um pouco, tirei as ilustrações para tentar dar uma carga mais adulta. Como já tinha feito a orelha das edições da Nova Fronteira, resolvi pela primeira vez pedir uma orelha assinada ao meu querido amigo Michel Melamed. Ele fez com carinho, mas não entendi nada do texto. Pelo menos a quarta capa dá o serviço.


Cuidado. Este livro quer te comer. O suculento naco que você tem agora em mãos (ou já sobre o prato?) traz os dentes afiados e a mais tenra fome temperada com fartas doses de apetite e gula. Mordisque algumas páginas, galerias e câmaras, e seu estômago é que gritará para devorá-lo! Porque são tantas as fomes salivando entre si, famélicas umas das outras, que, seja abocanhando, seja engolido, ao fim estaremos saciados. O que difere então uma isca do prato principal? Banquete e junkie food? Humano, animal, mente, corpo, civilização, barbárie, sol, luz fluorescente, desejo, moral…? “Preencher as frestas em silêncio” ou, parafraseando o jacaré narrador desta história, a vida é apenas o intervalo entre o que nos alimenta de verdade – e só a variedade alimenta. Por isso você lamberá os dedos para mudar essas páginas. Por isso regurgitar a digestão e vice-versa. Como bem disse Sebastian Salto: “minha fome é maior do que eu mesmo”. O mundo é definitivamente um grande estômago – e é preciso tê-lo para sobreviver engolindo sapos ou comendo moscas. Existe luz no fim do esgoto, ou melhor, dentro dele, melhor ainda: existe humor gourmet in natura. Enfim, você está lendo uma ORELHA, percebe? Feche com muito cuidado este livro (e sua boca) se não quiser tornar-se um suculento naco entre as patas do próximo leitor… - Michel Melamed, na orelha da edição da Record. 


A quarta capa da Record.
Também foi lançado na Itália e na Espanha – nessa cheguei a fazer uma pequena turnê por quatro cidades. E uma grande produtora do Rio chegou a me sondar para comprar os direitos para cinema, que nunca se concretizou (e duvido que teria sido produzido).

A bela capa italiana. 
O livro também rendeu uma música (e um disco). Meu querido amigo Daniel Peixoto (ex-vocalista do Montage) me pediu anos atrás uma letra - entreguei o que era basicamente um jingle do livro, e ele não apenas gravou como virou o título de seu primeiro álbum solo, "Mastigando Humanos". 

Engolindo o underground
de Artur Alvim a Ana Rosa
se a morte é inevitável
que então seja saborosa

Lipídios, glicídios, suicídios na minha janta
Mendigos, meninos, bem-vindos à garganta.

Mastigando Humanos
Mastigando, hermanos
Mastigando, manos
Mastigando

Se o crime é arriscado,
mesmo pra forrar despensa
Abra a boca e feche os olhos
no fim, o creme compensa

Já dizia titio Freud,
tudo é sexo, tudo é oral
Para um réptil como eu
rastejar não é tão mal

Lipídios, glicídios, suicídios na lancheira
Carpaccio, cachaça, canudos na carreira.

Mastigando Humanos
Mastigando, hermanos
Mastigando, manos
Mastigando

(letra minha, música do Daniel Peixoto)



É sem dúvida meu maior sucesso... até agora. Ainda gosto do livro, mas não me identifico nada com ele. Acho que é algo que só se pode escrever mesmo antes dos 30.

Com Adriane Galisteu. 

NESTE SÁBADO!