17/11/2018

O PRÉDIO, O TÉDIO E O MENINO CEGO (2009)


Eu gosto da capa... a ideia dos meninos formando o prédio... mas concordo que deu uma falsa ideia de livro juvenil....

O menino emergiu do quarto como um inseto envenenado. Segurando-se nos móveis, nas paredes, apoiando-se no batente, chegou até a sala tentando reconhecer o tempo e o espaço em que caminhava, desequilibrava. O prédio estava inclinado. Mas a isso ele já estava acostumado. O problema era o horário em que dormira, o horário em que acordara, com uma luz indecisa alaranjando a janela. Final da tarde ou começo do dia? Sempre era difícil se situar, quando dormia fora do horário... 

O prédio estava inclinado. Mas a isso ele já estava acostumado. O problema era o horário em que dormira, o horário em que acordara, fora de hora. Isso acontecia cada vez com mais frequência, agora que ele não tinha aulas. O menino ficava em casa, jogado pelos cantos, escorando-se na cama, deixando o cabelo crescer. Crescia além de sua masculinidade, cada vez mais branca, cada vez mais magra. Com uma compleição tão delicada que — aliada a seu longo cabelo escuro — os amigos não podiam evitar chamá-lo de andrógino. Ele não se importava.          


No que eu estava pensando quando escrevi esse livro, meu deus?



Oh! Céus! Em foto de Felipe Helmeister. (o problema foi ter cortado o cabelo, gente. Cortei o cabelo, perdi o talento.)


Hum, sei bem o que estava pensando. Depois do sucesso de um livro esdrúxulo como “Mastigando Humanos”, achei que eu podia escrever qualquer coisa, que sairia ileso. Não saí.

Sete meninos moram num prédio de frente para o m ar, um prédio inclinado, prestes a desabar, assim como suas vidas, na dura passagem para a adolescência. Os pais estão sempre longe. A escola está sempre em greve. O ócio e o tédio começam a propor perigosas possibilidades de mudança. Quando uma jovem professora se muda para a vizinhança, os meninos têm de enfrentar suas próprias masculinidades, descobrindo que, para nascer o homem, muitas vezes é preciso matar o menino. Em seu quinto romance, Santiago Nazarian aborda juventude e maturidade como dois sintomas da mesma doença. Assassinato, prostituição, inseticida e cocaína são os medicamentos, ainda que contraindicados, numa narrativa de lirismo, sadismo e humor corrosivo. O Prédio, o Tédio e o Menino Cego é um livro de descobertas nefastas. É literatura que quebra vidraças, destrói famílias e despertas zumbis. - Hum... acho que pesei tanto na orelha quanto no livro.


O projeto foi bem ambicioso. Um livro com sete protagonistas, sete arquétipos-estereótipos da adolescência masculina, meio uma declaração de amor à juventude (e um pouco resíduo do "It", do Stephen King). Foi bem planejado: um romance dividido em três partes, de sete capítulos cada. Nos primeiros sete, eu apresentava os meninos; nos sete seguintes, eles conheciam e se apaixonavam por uma nova professora; nos sete últimos a professora ia matando um por um.

Eu acreditava no ensino. Achava realmente que o estudo era a única saída pra uma vida melhor. E foi essa a minha busca. Pode não parecer, mas vim de uma família humilde. Tive um irmão que se envolveu com o tráfico, e foi morto pela polícia. Eu vivia com medo, nas ruas da periferia. Mas minha mãe — que Deus a tenha — sempre se empenhou muito para que eu não largasse os estudos. E assim eu consegui me formar, consegui ir pra uma faculdade, me tornar professora.

E assim como o estudo me salvou, eu achei que poderia salvar outras pessoas. Comecei a dar aulas voluntárias, numa favela perto de casa. Tinha de fazer aquilo nas horas vagas, porque eu também precisava de um emprego para me sustentar. Para sobreviver, comecei a dar aulas num rico colégio particular, só para meninos. Acho que minha beleza ajudou muito a conquistar a vaga. Fiquei tão feliz quando fui selecionada, era minha primeira turma, meu primeiro ano, a consagração de que eu era professora de fato, num colégio de renome. Me sentia muito orgulhosa, e achava que os alunos me tratariam, ao menos, com um certo respeito... Mas não foi assim que aconteceu. 


Logo no começo já tive graves problemas de disciplina. Por trás da maquiagem e da beleza, por trás dos bons modos aprendidos, os meninos podiam ver que eu vinha da periferia. E tiravam sarro de mim. Havia uma turma de sete que eram especialmente agressivos, indisciplinados, não havia nada que eu pudesse fazer. Eu tentava impor respeito, deixava-os de castigo, mandava-os para a diretoria. Mas com o tempo até o diretor foi se cansando disso, se cansando de mim, dizia que eu estava exagerando. O colégio era particular e era feito pra agradar aos pais, feito pra agradar aos alunos. Nós, professores, éramos meros funcionários das famílias, como seus motoristas, suas babás, suas cozinheiras. Os meninos é que mandavam por lá, não podíamos fazer nada, não podíamos impor respeito. E eu continuava tentando, mandando bilhetes para os pais, trancando os alunos depois da aula... Aquilo foi meu erro. Meu erro foi trancar-me numa sala com os sete, os sete piores meninos, depois do horário regular. Meu único intuito era fazê-los ler os livros didáticos, fazer a lição de casa, já que em casa eles não faziam de forma alguma. Queria que aproveitassem aquele tempo de detenção para que tirassem o atraso, mas não foi isso o que aconteceu... Meu erro foi deixar os sete meninos juntos, os sete piores meninos contra mim. Trancados na classe, começaram a zombar da minha cara, desafiar minha autoridade: ‘Você é uma mera professorinha, sabe quem é meu pai? Sabe quanto ele ganha? Sabe o que eu vou herdar? De onde tirou que podemos tomar você como exemplo? Acha que queremos estudar e terminar como você?’ Isso eram algumas das coisas que eles diziam, das coisas mais leves, e eu comecei a entrar em desespero. Eles foram se tornando ameaçadores, eu não entendia como meninos podiam dizer tudo aquilo. Ameacei ligar para os pais deles, avisar o diretor, a polícia... Mas eles estavam acima de tudo, acima de mim, além de qualquer autoridade. Sabiam que, como meninos ricos e mimados, não estavam subordinados a ninguém, e eu percebi que estava encurralada.

Naquele dia, naquela detenção, eles se levantaram das carteiras e se espalharam pela sala. Fumavam, bebiam, um deles acendeu um cigarro de maconha. Eu tentei sair da sala, pedir ajuda, mas um dos meninos bloqueou a porta. ‘Relaxa, professora. A aula já acabou. Não precisa ser tão profissional. Curte um pouco com a gente...’ Não sei se eles estavam planejando isso, mas quando notei o que poderia significar, os outros meninos já tinham no rosto o olhar de cumplicidade. ‘Vigia a porta’, disse um deles. O outro sacou da mochila um canivete. Outro já foi me apalpando, me empurrando pra cima da mesa: ‘Eu sei que você quer, putinha. Eu sei que tudo o que você quer é dar pra gente.’ Eu tentei correr, gritar, mas já encostavam o canivete no meu pescoço, me jogavam na mesa e começavam a rasgar minhas roupas. Antes que eu percebesse que seria inevitável, já era. Eles estavam dentro de mim, um, outro, e outro. O canivete sempre no pescoço. O estilete raspando no bico dos meus seios, o compasso... Quem me achou lá, horas mais tarde, foi uma funcionária da limpeza. Eu fiquei jogada, incapaz de me mexer. Sumi uma semana da escola. Não telefonei. Não atendi o telefone. Não dei satisfações. 

Uma semana depois, achei que deveria tomar providências. Conversei com o diretor, mas ele provavelmente estava com medo. Dizia que não seria bom pra ninguém aquele escândalo, que aqueles meninos eram de famílias influentes, se eu não poderia repensar o que tinha acontecido, de repente eu tinha certa responsabilidade... Fui afastada, eufemismo pra demitida. Demitida por ter sido estuprada. Fui à polícia, riram de mim pelas costas. Um dos pais ficou sabendo que eu tentava incriminar os meninos, e disse que se eu fizesse aquilo seria acusada de pedofilia. Eu estava num beco sem saída... Não tinha solução... Não tinha solução... A NÃO SER MATAR TODOS OS MENINOS QUE EU ENCONTRASSE DAQUELE DIA EM DIANTE! de maneira criativa e bem-humorada, claro, para não prolongar o melodrama.” - Cinismo nível hard no livro. 


Era uma alegoria bizarra dessa passagem da infância para a adolescência e cheguei a fazer um laboratório assistindo aulas por dez dias, com alunos de sétima e oitavas séries, para reavivar um pouco o espírito.

O resultado não foi dos melhores...


O livro também tem 24 ilustrações - uma para cada capítulo e uma para cada divisão das partes do livro, todas pelo Alexandre Matos. 

O Mestiço Cego, o Andrógino Apático, o Gordo Histérico, o Negro Ejetado, o Narciso Vesgo, o Junkie Iluminado e o Atleta Desprendido. Eram esses os codinomes irônicos dos meninos (que confesso que tive de consultar agora no livro, porque não me lembrava mais), vivendo num prédio inclinado, num futuro distópico, numa cidade litorânea em que neva, a escola está sempre em greve, e é assolada por zumbis – basicamente uma salada de tudo o que compõe meu universo. Passei três anos escrevendo, reescrevendo, entre 2006 e 2009, e tive muitos problemas com a editora.

Os meninos na versão do Lestrange, que era leitor na época e iria se tornar o ilustrador de "Garotos Malditos". 

A Nova Fronteira, que havia lançado “Mastigando Humanos”, comprou o livro, pagou um bom adiantamento, mas entrou em crise no meio processo, sendo vendida para a Ediouro. O livro ficou mais de um ano engavetado, a editora parou de responder meus emails e eu, com a falta de noção que me é peculiar, postei neste blog literalmente isso:

“Minha editora foi comprar cigarros e nunca mais voltou. Eu torço com perversidade em vê-la voltando nas últimas, careca, em quimio, com câncer de pulmão. Então eu tiraria meus originais das mãos dela e apagaria uma bituca em sua testa. Assim seria feliz para sempre, no prédio, no tédio, com meus sete meninos cegos (que atualmente andam surdos e mudos também.)

Pesado, eu sei. Hoje eu faria diferente. De todo modo, funcionou. No dia seguinte a editora rompia contrato comigo, fiquei com a grana, e migrei na mesma hora para a Record, para onde eu já traduzia. Recebi de novo um bom adiantamento, o Alê recebeu novamente pelas ilustrações e fomos felizes para sempre.

Nem tanto.

Eu e Alê no lançamento, com minha mãe ao fundo (do Glamurama: https://glamurama.uol.com.br/galeria/santiago-nazarian-28509/ )

O livro foi lançado com pompa – a noite de autógrafo no Bar Volt, aqui em São Paulo, foi um acontecimento, lotou, saiu em TODAS as colunas sociais (Folha, Estado, Vogue RG e Glamurama) e o livro foi um fracaaaasso. Ou quase. 

De Luis Augusto Fischer. 

“Nazarian erra a mão em romance”, foi a manchete da primeira crítica, na Folha. Em geral, o povo não gostou nada do livro. Acho que foi uma mistura indigesta de universo juvenil, com escrita queer, que poderia funcionar em outros territórios (vide Chuck Palahniuk), mas que não caiu bem por aqui. Ninguém entendeu direito para que público era o livro. Talvez nem eu.

(Na versão online amenizaram o título, mas o texto é o mesmo:  https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0509200911.htm) 

O mercado também havia mudado nesses três anos que fiquei sem publicar e a Record não teve o trabalho de divulgação direcionado que eu tive nos primeiros livros. Acabou sendo frustração atrás de frustração, principalmente porque eu estava muito mal-acostumado (e metidinho) pela minha trajetória.

 Com a Mary Moon, pra MTV. 
Mas também não foi um fracaaaasso. Teve uma ou outra resenha boa, fui pela terceira vez no programa do Jô e continuei a catar leitores lindos (afinal, o livro foi literalmente dedicado a eles).

Prova de que até teve crítica boa: https://www.terra.com.br/istoegente/edicoes/522/artigo151340-1.htm

Eu com Alê Matos nos bastidores da minha terceira entrevista no Jô. Foi bacaninha. 

Hoje... Não sei. Fiquei muito tempo com um olhar atravessado para esse livro. Mas pegando agora para fazer esse texto, tenho certo orgulho – de ter conseguido publicar por uma grande editora algo tão alternativo; de manter a integridade da minha visão. Ainda acho que o livro tem belas passagens, como o capítulo em que começa a chover e basicamente temos de esperar a chuva acabar para avançar a história, para o próximo capítulo; é de longe meu livro mais bem estruturado. Acho que teria se beneficiado de uma boa edição (a culpa é dos editores, não é minha!), acho que tem muita punheta, muita piada interna, muito humor poser, mas não me arrependo de ter publicado não. (E continua em catálogo na Record.)


Essa dupla foi impressa propositadamente meio torta - acho que cada livro tem um ângulo diferente. 

É também meu livro com o projeto gráfico mais lindo, todo do Alexandre Matos, amigo querido que era praticamente o oitavo menino do livro (o Artista Espírita?). Chegou a ser finalista... (chegou a ganhar?) de um prêmio de projeto gráfico.







As ilustrações que abrem os capítulos têm também essas releituras.


No fim, bem ou mal, tenho a pretensão de dizer que é o MAIOR ROMANCE EMO QUE ESTE PAÍS NUNCA LEU!

E eu teria fracassos maiores/piores...


A foto de orelha foi uma foto turística, tirada em Bogotá pela (escritora) Verônica Stigger. 


ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...