03/11/2018

FERIADO DE MIM MESMO (2005)



Uma das minhas melhores capas. 

Ele acordou num feriado que caía no Dia dos Namorados. São Valentim, Corpus Christi, Carnaval?
Não importava. Ele não tinha namorada nem trabalhava. Poderia dormir até mais tarde. Poderia dormir para sempre, se assim quisesse, mas não queria. Já não tinha tanto sono e a bexiga cheia era o suficiente, era o suficiente para fazê-lo largar a cama e caminhar até o banheiro, no Dia dos Namorados...


Feriado de Mim Mesmo, meu terceiro livro foi escrito poucos meses depois de eu lançar meu primeiro, em 2003, com 25-26. Foi um curto período em que eu tinha voltado a morar com minha mãe, depois de anos morando em Porto Alegre e Londres, que eu engatinhava na carreira literária e sofria para pagar as contas fazendo roteiros de disk-sexo e disk-horóscopo para uma operadora de celular.

Você mora sozinho, trabalha no seu apartamento, não tem nenhum tipo e relacionamento e todos que fizeram parte do seu passado, inclusive seus pais, se mudaram para a Argentina. Seus programas se restringem a ir ao cinema e passear pelas ruas, para fazer o tempo passar. Mas tudo isso não é um problema para você. O problema não é a solidão, justamente o contrário. É o outro, alguém ou algo que ronda sua vida e seu apartamento, invadindo seu espaço, ameaçando sua rotina. Paranoia, paranormalidade ou esquizofrenia? Santiago Nazarian vai aos limites do indivíduo num thriller onde detalhes fazem toda a diferença. – Outra orelha minha; não é por acaso que o título foi escrito em primeira pessoa, a orelha em segunda e o texto em terceira.

A história do escritor-tradutor que mora sozinho, trabalha em casa, não era tanto a minha realidade, como era meu desejo. Quase um manifesto pela individualidade. Baseei o cenário no apartamento em que morei anos antes em Porto Alegre, incluindo a janela que dava para o pátio do Inmetro.

Depois dos excessos narrativos de “Olívio” e “A Morte Sem Nome”, minha busca foi fazer uma novela minimalista, absolutamente linear, um personagem num apartamento, muito inspirado em “A Metamorfose”, de Kafka.


 Entrou então no banho. Era uma forma de começar o dia. Molhar os cabelos, trocar de roupa. A água quente cumprimentando-o. Os vizinhos passando na janela ao lado. Os entregadores de gás, os barulhos dos bujões. Seus próprios pêlos, ainda lá, e o sabonete deslizando livremente pelo rosto. O rosto barbeado misteriosamente. E o telefone tocando.

Ele corria com os ouvidos fora do box para ouvir o recado. A secretária eletrônica atendia e alguém deixava seu recado. “Alô. Alô, você está aí?” Ele decidia que o melhor era atender. “Alô, só queria convidar você pra almoçar.” Nem se enrolava na toalha e corria pingando pela sala. “Bom, mas então a gente se fala depois. Me liga.” A voz familiar de sempre. E ele atendia o telefone.

Tarde demais. Desligado. Pingando em tu, tu, tu, pela sala. O chuveiro lá longe, ligado. Precisaria de muito vento no corredor para secar tudo aquilo, mas ele não se importava. Caminhou lentamente de volta ao banheiro. Ao menos sabia que não estava esquizofrênico. Aquela pessoa existia, ligava sempre para ele, deixava recado. Não era apenas quando ele não estava. Não era apenas quando ele dormia. Ouvira a voz em tempo real, no meio do banho, chegou quase a tempo de atendê-la. E talvez apenas se parecesse com sua própria voz porque ele perdera o costume de ouvir outras. E porque perdera o costume de ouvir outras vozes, sentia que todas eram iguais. Afinal, eram todas vozes humanas. Era uma outra voz masculina, na mesma língua que a dele, no seu apartamento, ecoando entre as mesmas paredes, perfeitamente compreensível.

Esperava que a água quente cumprisse com a sua função. Esperava que a água quente o relaxasse e o fizesse esquecer das mensagens perdidas que ele não compreendia. Sacudindo um amor passado. Escorrendo pelo ralo. Ele aproveitava o momento para se masturbar. Era uma atividade física. E não deixava de ser apenas uma atividade mecânica, pois não conseguia pensar em mais ninguém concreto, nenhuma lembrança, nenhum desejo. As artistas de TV já não o excitavam. Nenhuma história. Esforçava-se para que o trabalho da mão e a velocidade do pulso fossem o suficiente. Para que o corpo não conseguisse escapar, ainda que a mente estivesse desconectada do contato com outros seres humanos. Seu ínfimo orgasmo servia apenas para afastar sua vontade. Servia apenas para que ele não pensasse mais nisso. 

E em seu ínfimo orgasmo ouvia um sino tocando. Em seu ínfimo orgasmo via pingos caindo. Em seu ínfimo orgasmo ouvia um sino tocando, uma campainha, um telefone, interfone, chamando por ele na sala.

Gosto muito da maneira como foi estruturado, passado todo dentro de um cenário restrito. Não há externas, nem nos sonhos, nem em flashbacks. Toda vez que ele sai de casa, ou dorme, o capítulo termina. Todo capítulo começa com “acordou” ou “voltou”. O personagem só existe naquele momento presente, no apartamento. O ritmo lento, contido, foi um grande exercício para mim, que depois pude desenvolver com facilidade em “BIOFOBIA” e “Neve Negra.”


Foi publicado em 2005, também pela Planeta, que fez ótima divulgação. Teve duas edições, com textos ligeiramente diferentes. Corrigi alguns erros da revisão, mudei alguns diálogos. Num dos capítulos finais, quando o personagem é tirado de casa, há uma enxurrada de nomes-personagens, os vizinhos, que peguei todos de escritores contemporâneos: Ivana, Joca, Marcelino, Moacyr, Bernardo, Evandro, Clara... (os nomes variam também de acordo com a edição – acho que tirei o Nelson [de Oliveira] depois que ele falou mal do livro no Estadão. Haha)

As críticas em geral foram ótimas, na Bravo, Carta Capital, Zero Hora, Jornal do Brasil, Globo. Folha e Estadão foram levemente negativas – na Folha Marçal Aquino escreveu que “Feriado de Mim Mesmo é árduo como um dia útil.” Pfff. Ainda acredito muito no livro (e sim é o terceiro e último que está fora de catálogo – os outros seis continuam sendo vendidos, pela Record e Companhia das Letras).


A montagem teatral - com três atores quase idênticos fazendo o único personagem - ficou em cartaz no Rio e em SP. 

Foi meu livro que mais recebeu propostas para cinema, teatro, porque afinal é uma produção baratíssima. Passou por três produtoras-diretores, com projetos de longa – alguns me pagaram, outros não – mas nunca saiu do papel. (Fiz uma das versões do roteiro – queria que fosse uma coisa total Tsai Ming Liang, outra grande influência). Em teatro, teve uma belíssima montagem da companhia Teatro de Extremos, com direção do Fabiano de Freitas, da qual não participei ativamente, mas foram muito fiéis ao meu texto. Também foi vendido para uma editora italiana, mas nunca foi lançado de fato por lá.

Beijos do Gordo. 
 Uma das maiores conquistas do livro foi minha primeira entrevista no Programa do Jô, é claro. Eles já haviam falado comigo na época de “Olívio”, mas terminaram a entrevista por telefone dizendo na minha cara: “Ah, não interessa. Não tem graça.” Dois anos depois me ligaram, falaram a mesma coisa, mas na semana seguinte retornaram, dizendo que o Jô insistira para fazer. Deu muito certo, tanto que a entrevista foi reprisada na Globo. Na época o programa ainda tinha forte repercussão, e no dia seguinte estava recebendo convites pra festas e São Paulo Fashion Week.


A entrevista me vendeu mais como um ser exótico-bizarro, “ex-barman de prostíbulo gay”, mas o Jô sempre foi muito carinhoso e deu espaço para falar dos livros. Começava aí meu hype, que também gerou muita antipatia no meio literário.

Minha melhor foto de orelha, sem dúvida. 

As fotos de capa, contracapa e orelha foram feitas novamente pelo Daniel Luciancencov, meu namorado na época. Fizemos no Lord Palace Hotel, no centro de SP, um hotel que estava desativado e abriu todos os quartos para instalações de arte. A mão e o sangue, como sempre, são meus mesmo.


Bastidores. 

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