30/09/2019

A REAL DA LITERATURA FANTÁSTICA

Debate no Sesc Santo Amaro sobre literatura de horror no Brasil, com (a partir da esquerda) Santiago Nazarian, André Vianco, Marcos DeBrito e Raphael Fernandes
Eu, Vianco, DeBrito e Raphael Fernandes em debate mês passado . 
(Íntegra do texto que publiquei ontem na Folha, com minhas considerações e polêmicas abaixo:)



Nunca houve um momento tão bom quanto o atual para a literatura fantástica no Brasil. Festivais temáticos proliferam, autores emplacam sucessos de vendas, novas produções no cinema e na TV levam o terror e a fantasia para novos públicos. A despeito disso, o momento também nunca foi pior.

Acompanho a cena há quase 20 anos. Sempre há essa sensação de “agora vai” quando a Globo anuncia uma série de terror (como "Supermax", de 2016), quando um filme como um ator badalado estreia (como "Isolados", de Thomas Portella, com Bruno Gagliasso, de 2014), quando surge um novo autor sucesso de vendas (como André Vianco, na virada do século).

Entretanto, apesar de apelo comercial e sucesso relativo de público, a literatura fantástica brasileira permanece sempre à margem, não apenas desprezada pela crítica, mas incapaz de deixar uma marca na cultura nacional.

Recentemente estive em uma mesa com autores conhecidos do gênero —Marcos DeBrito, Raphael Fernandes e o próprio André Vianco— para debater algumas dessas questões, especificamente relativas à literatura de horror.

“Por que a literatura de horror permanece à margem?”, questionei. As justificativas correram em círculos: “não se dá espaço à literatura de gênero”, “é vista como algo menor”, “é relegada a um público infantil”. Tudo isso é verdade, mas essas são as consequências, não a causa. Por que essa literatura é vista como menor?

O Brasil não tem uma tradição no fantástico —e isso também não chega a ser uma explicação, é outra consequência. Enquanto na América Latina existem correntes importantes de realismo fantástico, no Brasil o “realismo concreto” sempre imperou. Arrisco uma razão: a extensão territorial e a miscigenação do nosso povo fez com que a produção cultural/artística nacional se sentisse sempre na responsabilidade de explicar nossa identidade, retratar nossa realidade.

Apesar de termos um folclore riquíssimo, a fantasia na produção artística foi vista como um exagero, destinada a entreter (e, por isso, seria voltada a um público menos sofisticado ou infantojuvenil).

Agora, enquanto temos uma diversidade enorme de formas de publicação (com os e-books) e mais espaço para produção audiovisual (com plataformas de streaming, YouTube, canais a cabo), também temos uma crise política e identitária que ressalta essa necessidade de retratar a realidade. Levar a literatura para o fantástico soa fútil num momento como este, mesmo que esteja a serviço de uma alegoria.

É triste que seja assim. Em países como a Argentina, autoras de minha geração, como Samantha Schweblin e Mariana Enriquez conseguem emplacar sucessos editoriais, com respaldo crítico e fortes elementos sobrenaturais (vide “Distância de Resgate” de Schweblin, e “As Coisas que Perdemos no Fogo” de Enriquez). Aqui até há bons autores que tentam, mas sempre se fica numa zona cinzenta.

Há dois anos, a produtora RT Features (que tem no currículo filmes importantes do universo fantástico, como "A Bruxa", de 2015) resolveu encomendar e investir numa coleção de livros de terror “literário” (ou o que foi chamado posteriormente de “pós-terror”), cujos direitos de adaptação audiovisual pertenceriam a ela.

Apenas três títulos saíram, publicados pela Companhia das Letras de forma isolada, sem a unidade de uma coleção —“As Perguntas”, de Antônio Xerxenesky, “Enterre seus Mortos”, de Ana Paula Maia, e o meu "Neve Negra". Arrisco-me a dizer que os livros tiveram recepção morna —vistos com desconfiança pelo meio literário, tampouco foram abraçados pelos fãs do gênero.

Talvez o mais bem-sucedido desses três tenha sido o livro de Ana Paula, não apenas pelo ótimo texto, mas exatamente por não conter elementos fantásticos e se afastar das convenções do que se chama terror (além, talvez, de carregar uma bandeira involuntária, por ter sido escrito por uma mulher negra).

Assim, o ciclo permanece, e a literatura fantástica que encontra espaço é voltada a um público mais jovem, uma literatura de entretenimento. E que mal há nisso?, perguntariam os autores que vendem bem e contestam a divisão entre “alta” e “baixa” literatura, levantando a bandeira da ficção comercial como uma forma de popularizar a leitura.


O problema é que a literatura de entretenimento é feita para ser de consumo fácil e rápido —comunica-se com o instante, mas não tem lastro para permanecer. Assim, nunca se cria um histórico do gênero fantástico no Brasil, porque os livros são perecíveis. Não deixam uma marca em nossa cultura.

É curioso notar que nosso cineasta mais bem-sucedido no terror (o único?), José Mojica Marins, o Zé do Caixão, tenha feito sucesso justamente com um personagem “de carne e osso” que nega a todo tempo o fantástico, que não acredita no “além”.

Talvez esteja aí uma fórmula mais viável, que não precisa necessariamente se ancorar no fantástico —a literatura de gênero pode ganhar relevância se encontrar formas de retratar nossa realidade de forma objetiva. Isso já acontece, por exemplo, na literatura policial, que de uma forma ou de outra sempre teve maior espaço.

***



Acordei, postei o texto nas minhas redes. Como sempre o povo é só elogios e comentários civilizados. Mas por trás, é claro, vem povinho esbravejar. Depois do almoço um amigo avisa: "Ó, tão te xingando lá no twitter."

O povo gosta de polemizar. Os contra-argumentos que li eram de que "tal autor está vendendo muito", "há todo um novo movimento da literatura fantástica", "eu vendi 200 livros em um mês!" (Oi? Isso não é o que se vende numa noite de autógrafos?).  Parece que o povo não leu o começo do texto que diz "Nunca houve um momento tão bom para a literatura fantástica". E que todo o texto aponta que, apesar de ter autores que vendem, apesar de até existir autores de qualidade, e de ter festivais temáticos, não se cria uma tradição de literatura fantástica, ela permanece à margem, uma subcultura desses nerds de twitter.

(Daí a gente vai ver, é gente que usa nick tipo "Cassandra Werewolf" e diz que é autoridade por ler Stephen King desde os 11 anos... Provavelmente desde quando eu já publicava e já traduzia literatura de horror. É por essas que acham que literatura fantástica é coisa de moleque...)

O pesquisador Bruno Matangrano foi mais elegante e fez boas contra-argumentações, mas a mim me parece a visão de alguém que está mergulhado num universo, e acha que o mundo todo está com ele, enquanto que a visão geral do meio literário permanece que "o Brasil só produziu literatura fantástica da pior qualidade", inclusive foi o comentário que li hoje de uma importante agente literária. 

Há promessas de mudança, como eu coloquei no texto, mas eu acompanho a cena há décadas e não consigo ser otimista, meus queridos. Os autores de ficção fantástica não estão representando o Brasil nos eventos lá fora, não estão na Flip, não são finalistas de Jabuti, ficam sempre restritos a esse nicho à parte (diferentemente de outros países, como coloquei, em que a literatura fantástica participa do mainstream), têm eventos próprios, prêmios próprios, não deixam sua marca.

O pessoal do Twitter veio protestar que eu "não sabia" o que acontecia no nicho, mas o texto era exatamente sobre isso, que permanecia um nicho que não se comunicava com o meio literário maior. 

Veio gente também dizer que era a MINHA literatura que não decolava, por isso eu me doía. Isso pode até ser, meu olhar pode estar meio viciado por isso - mas convém lembrar que meu livro de maior "sucesso comercial", "Mastigando Humanos", que vendeu algumas dezenas de milhares, pode se dizer que é um livro fantástico, mas que não contradiz o que eu disse - foi um livro que atingiu um público mais jovem, e não contribuiu para estabelecer uma nova corrente de fantástico no país.

(E concordo que talvez eu não devesse ter usado o exemplo do meu próprio livro, do "Neve Negra", no texto; mas é que era uma história de bastidores que eu conhecia bem, da coleção que não emplacou.)

Algumas pessoas se doeram também - não sei porque - pelo meu comentário sobre o livro da Ana Paula Maia, que eu adoro, que é minha amiga, e que inclusive fui eu a primeira pessoa a falar dela, lá em 2003 (e inclusive fiz a orelha e dei o título do segundo livro dela).

Então eu SEI do que estou falando - nem só pelo meu conhecimento do gênero, mas principalmente por ter uma visão mais ampla, do meio literário. E o texto foi fruto de uma discussão que tive com três dos maiores autores de fantasia/terror do momento. Mas, é claro, é uma opinião pessoal. E acho sempre válida a discussão. É só uma pena que o povo queira mais é atacar, e pelas costas, nos seus grupinhos, e a discussão, como a literatura fantástica, não avança...



NESTE SÁBADO!