(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo)
Do que devemos
proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que
gatilhos evitar para quem cresce em um país traumático como o Brasil? Você só
descobriu o sexo depois que mamãe e papai autorizaram?
As polêmicas atuais
em torno da censura de livros pretensamente passam muito pela proteção das
crianças e dos adolescentes. Mas é mais fácil assustar uma criança ou ofender
um evangélico? Quem realmente está se incomodando com o quê? Escolas, editoras,
curadores e os próprios autores parecem estar tentando prever tudo isso. Como
fazer para que nossos livros passem pela censura?
Nas últimas
semanas, foi pedido o recolhimento do romance "O Avesso da Pele"
(Companhia das Letras), do gaúcho Jeferson Tenório, em escolas do Paraná, de
Goiás e do Mato Grosso do Sul, sob o pretexto de que a história contém palavras
de baixo calão, de cunho sexual.
Marçal Aquino
sofreu ataques semelhantes no ano passado, com seu romance "Eu Receberia
as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" (Companhia das Letras) sendo
retirado da lista de leituras do vestibular de uma universidade de Goiás.
Censura ainda mais
grave vem sofrendo o livro "Outono de Carne Estranha" (Record), de
Airton Souza, vencedor do prêmio Sesc, por parte da diretoria da própria
instituição.
O romance, que
narra encontros homossexuais no garimpo de Serra Pelada, teve circulação
restrita dentro do circuito do Sesc e levou a demissões, atrasos e mudanças no
edital do prêmio, que ameaçam a independência do júri com uma censura prévia,
do que pode ou não ser premiado em futuras edições.
Alguns observam
esses movimentos como atos reacionários da direita, mas é importante notar
também os ataques e as "readequações" que obras como as de Monteiro
Lobato vêm sofrendo por representar realidades que já não estão de acordo com
pautas progressistas. José Roberto Torero e Marcus Aurélio Pimenta tiveram seu
livro infantil "Abecê da Liberdade" recolhido pela própria editora, a
Companhia das Letras, em 2021, por mostrar cenas de crianças negras brincando
em um navio negreiro.
A literatura é a
arte do indivíduo, a materialização de universos particulares, independentes e
subjetivos, em palavras. O grande mérito da literatura sempre foi não buscar
consenso, e a grande literatura é aquela que traz algo novo, ainda não
discutido, que pode surpreender, maravilhar e incomodar.
Há muito os autores
brasileiros se acostumaram com a ideia de que o livro é uma obra limitada, de
nicho, que não vai atingir grandes públicos, não vai mudar o país.
O problema talvez
esteja na ambição de um livro de inegável qualidade, como o de Tenório, de
furar a bolha da literatura e querer conquistar um público gigantesco no Brasil
de hoje. Alguém sempre vai se incomodar. As crianças não estão preparadas para
ler porque os pais não foram preparados para ler, para discutir, refletir.
Mas a ambição
talvez faça sentido, porque, em muitos casos, as editoras se adiantam não para
"abafar o caso", mas para expor nacionalmente a censura, fazendo com
que o livro repercuta e venda ainda mais. Foi noticiado que "O Avesso da
Pele" aumentou suas vendas em 400% depois da "censura
provinciana". Seu alcance está longe de ser limitado, e o autor merece
mais nossa admiração do que nossa solidariedade.
A grande censura,
porém, é bem mais silenciosa. No meio da literatura infanto-juvenil, temas,
palavras e ideias são previamente vetados há muito tempo. Livros tidos como
controversos não são nem mais considerados pelas editoras, porque podem causar
atritos com pais e professores e dificultar a aprovação em editais de compra do
governo, o que inviabiliza a edição comercialmente.
Essa controvérsia
se dá tanto com conteúdos sensíveis a grupos religiosos (que podem barrar até
figuras clássicas da literatura infantil, como bruxas e dragões) quanto com
temas que ferem a sensibilidade progressista, como a violência ou a
representação exclusiva do modelo familiar clássico.
Editoras do
segmento infanto-juvenil contam com conselhos de pais e professores para
analisar o livro antes de sua contratação ou durante sua edição, orientando
sobre o que pode ou não ser dito às crianças (um papel que deveria ser
reservado a cada família). Desses livros impedidos de circular, nós nem ficamos
sabendo.
Agora essa mesma
prática está sendo adotada pelas editoras na literatura adulta, com a
contratação dos "leitores sensíveis", responsáveis por analisar se
certa palavra pode soar ofensiva a homossexuais, se uma ideia pode ecoar mal no
movimento negro, se as mulheres vão se incomodar com certa cena, se o livro
contém "gatilhos" (conceito tão amplo e tão odioso que, na prática,
significa qualquer coisa que possa despertar algo de negativo).
Alguns livros
controversos ainda são publicados, pois, no fim das contas, o investimento é
relativamente baixo. Mas esses livros não são inscritos em editais como o
Programa Nacional do Livro e do Material Didático, circulam pouco, e seus
autores não são convidados para grandes eventos, para grandes festivais, não
têm colunas em jornais, pois podem tanto inflamar a ira de bolsonaristas quanto
de movimentos de minorias e, principalmente, afastar patrocinadores.
A verdadeira
censura, afinal, não é ideológica, restrita à direita ou à esquerda, é uma
censura de mercado. O que pode limitar o potencial mercadológico do livro vem
sendo vetado.
Alguns podem dizer
que sempre foi assim —o livro, afinal, é um produto; se não tem viabilidade
comercial, é rejeitado. Isso, porém, vem se intensificando e penetrando cada
vez mais em um meio em que eram permitidos o conflito, o debate, a reflexão.
A literatura sempre
foi o último meio de resistência, no qual se podia dizer tudo o que não se pode
dizer em nenhum outro lugar. Se não for mais assim, algumas ideias permanecerão
apenas em nossas cabeças. Eu me pergunto: o que acontecerá quando essas ideias
não encontrarem mais meio de escape?
A censura
mercadológica se intensifica também na literatura porque o mercado penetra em
todas as áreas da existência contemporânea. As redes sociais promoveram a
mercantilização de nossas vidas. Buscamos não apenas sermos valorizados,
"curtidos", mas monetizados.
Os criadores de
conteúdo —hoje, qualquer um que tenha conta no Facebook, Instagram, YouTube,
TikTok e afins— estão sujeitos a uma censura sobre seu próprio dia a dia.
Ideias, palavras, momentos não podem ser compartilhados porque ameaçam o
alcance de suas postagens e o eventual lucro (financeiro, inclusive) que se
pode obter.
Nesse contexto, não
há espaço para o sarcasmo, o cinismo (como o parágrafo de abertura deste
texto); a ironia foi assassinada, tendo de vir sucedida do odioso SQN ("só
que não") para deixar claro que o texto contém contradições.
A questão das
palavras proibidas tornou-se tão patética que canais do YouTube sobre crimes
reais, dedicados a analisar a violência, precisam alterar algumas grafias
("v1olência", "est*pro", "m4t4r"), ou então
perdem a chance de serem monetizados. Não é uma questão de não assustar as
criancinhas, é não assustar os anunciantes.
A subjetividade da
literatura vem sendo ameaçada não por bolsonaristas, não pela "cultura
woke", mas porque os meios de comunicação atuais buscam o consenso, a
unanimidade, atingir todos os públicos, não ofender ninguém. As redes sociais,
que cresceram promovendo a diversidade e a comunicação de nicho, agora têm de
agradar a todo o mundo ao mesmo tempo.
E a literatura não
é isso, nunca foi isso. Não tem espaço nessa realidade. Como venho dizendo,
querem que vivamos em um mundo de censura livre, quando deveríamos buscar um
mundo livre de censura.