17/03/2024

TIREM AS CRIANÇAS DA SALA

(Publicado na Ilustríssima da Folha deste domingo)


Do que devemos proteger nossas crianças? Como não ofender quem acredita no pecado? Que gatilhos evitar para quem cresce em um país traumático como o Brasil? Você só descobriu o sexo depois que mamãe e papai autorizaram?

As polêmicas atuais em torno da censura de livros pretensamente passam muito pela proteção das crianças e dos adolescentes. Mas é mais fácil assustar uma criança ou ofender um evangélico? Quem realmente está se incomodando com o quê? Escolas, editoras, curadores e os próprios autores parecem estar tentando prever tudo isso. Como fazer para que nossos livros passem pela censura?

Nas últimas semanas, foi pedido o recolhimento do romance "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras), do gaúcho Jeferson Tenório, em escolas do Paraná, de Goiás e do Mato Grosso do Sul, sob o pretexto de que a história contém palavras de baixo calão, de cunho sexual.

Marçal Aquino sofreu ataques semelhantes no ano passado, com seu romance "Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios" (Companhia das Letras) sendo retirado da lista de leituras do vestibular de uma universidade de Goiás.

Censura ainda mais grave vem sofrendo o livro "Outono de Carne Estranha" (Record), de Airton Souza, vencedor do prêmio Sesc, por parte da diretoria da própria instituição.

O romance, que narra encontros homossexuais no garimpo de Serra Pelada, teve circulação restrita dentro do circuito do Sesc e levou a demissões, atrasos e mudanças no edital do prêmio, que ameaçam a independência do júri com uma censura prévia, do que pode ou não ser premiado em futuras edições.

Alguns observam esses movimentos como atos reacionários da direita, mas é importante notar também os ataques e as "readequações" que obras como as de Monteiro Lobato vêm sofrendo por representar realidades que já não estão de acordo com pautas progressistas. José Roberto Torero e Marcus Aurélio Pimenta tiveram seu livro infantil "Abecê da Liberdade" recolhido pela própria editora, a Companhia das Letras, em 2021, por mostrar cenas de crianças negras brincando em um navio negreiro.

A literatura é a arte do indivíduo, a materialização de universos particulares, independentes e subjetivos, em palavras. O grande mérito da literatura sempre foi não buscar consenso, e a grande literatura é aquela que traz algo novo, ainda não discutido, que pode surpreender, maravilhar e incomodar.

Há muito os autores brasileiros se acostumaram com a ideia de que o livro é uma obra limitada, de nicho, que não vai atingir grandes públicos, não vai mudar o país.

O problema talvez esteja na ambição de um livro de inegável qualidade, como o de Tenório, de furar a bolha da literatura e querer conquistar um público gigantesco no Brasil de hoje. Alguém sempre vai se incomodar. As crianças não estão preparadas para ler porque os pais não foram preparados para ler, para discutir, refletir.

Mas a ambição talvez faça sentido, porque, em muitos casos, as editoras se adiantam não para "abafar o caso", mas para expor nacionalmente a censura, fazendo com que o livro repercuta e venda ainda mais. Foi noticiado que "O Avesso da Pele" aumentou suas vendas em 400% depois da "censura provinciana". Seu alcance está longe de ser limitado, e o autor merece mais nossa admiração do que nossa solidariedade.

A grande censura, porém, é bem mais silenciosa. No meio da literatura infanto-juvenil, temas, palavras e ideias são previamente vetados há muito tempo. Livros tidos como controversos não são nem mais considerados pelas editoras, porque podem causar atritos com pais e professores e dificultar a aprovação em editais de compra do governo, o que inviabiliza a edição comercialmente.

Essa controvérsia se dá tanto com conteúdos sensíveis a grupos religiosos (que podem barrar até figuras clássicas da literatura infantil, como bruxas e dragões) quanto com temas que ferem a sensibilidade progressista, como a violência ou a representação exclusiva do modelo familiar clássico.

Editoras do segmento infanto-juvenil contam com conselhos de pais e professores para analisar o livro antes de sua contratação ou durante sua edição, orientando sobre o que pode ou não ser dito às crianças (um papel que deveria ser reservado a cada família). Desses livros impedidos de circular, nós nem ficamos sabendo.

Agora essa mesma prática está sendo adotada pelas editoras na literatura adulta, com a contratação dos "leitores sensíveis", responsáveis por analisar se certa palavra pode soar ofensiva a homossexuais, se uma ideia pode ecoar mal no movimento negro, se as mulheres vão se incomodar com certa cena, se o livro contém "gatilhos" (conceito tão amplo e tão odioso que, na prática, significa qualquer coisa que possa despertar algo de negativo).

Alguns livros controversos ainda são publicados, pois, no fim das contas, o investimento é relativamente baixo. Mas esses livros não são inscritos em editais como o Programa Nacional do Livro e do Material Didático, circulam pouco, e seus autores não são convidados para grandes eventos, para grandes festivais, não têm colunas em jornais, pois podem tanto inflamar a ira de bolsonaristas quanto de movimentos de minorias e, principalmente, afastar patrocinadores.

A verdadeira censura, afinal, não é ideológica, restrita à direita ou à esquerda, é uma censura de mercado. O que pode limitar o potencial mercadológico do livro vem sendo vetado.

Alguns podem dizer que sempre foi assim —o livro, afinal, é um produto; se não tem viabilidade comercial, é rejeitado. Isso, porém, vem se intensificando e penetrando cada vez mais em um meio em que eram permitidos o conflito, o debate, a reflexão.

A literatura sempre foi o último meio de resistência, no qual se podia dizer tudo o que não se pode dizer em nenhum outro lugar. Se não for mais assim, algumas ideias permanecerão apenas em nossas cabeças. Eu me pergunto: o que acontecerá quando essas ideias não encontrarem mais meio de escape?

A censura mercadológica se intensifica também na literatura porque o mercado penetra em todas as áreas da existência contemporânea. As redes sociais promoveram a mercantilização de nossas vidas. Buscamos não apenas sermos valorizados, "curtidos", mas monetizados.

Os criadores de conteúdo —hoje, qualquer um que tenha conta no Facebook, Instagram, YouTube, TikTok e afins— estão sujeitos a uma censura sobre seu próprio dia a dia. Ideias, palavras, momentos não podem ser compartilhados porque ameaçam o alcance de suas postagens e o eventual lucro (financeiro, inclusive) que se pode obter.

Nesse contexto, não há espaço para o sarcasmo, o cinismo (como o parágrafo de abertura deste texto); a ironia foi assassinada, tendo de vir sucedida do odioso SQN ("só que não") para deixar claro que o texto contém contradições.

A questão das palavras proibidas tornou-se tão patética que canais do YouTube sobre crimes reais, dedicados a analisar a violência, precisam alterar algumas grafias ("v1olência", "est*pro", "m4t4r"), ou então perdem a chance de serem monetizados. Não é uma questão de não assustar as criancinhas, é não assustar os anunciantes.

A subjetividade da literatura vem sendo ameaçada não por bolsonaristas, não pela "cultura woke", mas porque os meios de comunicação atuais buscam o consenso, a unanimidade, atingir todos os públicos, não ofender ninguém. As redes sociais, que cresceram promovendo a diversidade e a comunicação de nicho, agora têm de agradar a todo o mundo ao mesmo tempo.

E a literatura não é isso, nunca foi isso. Não tem espaço nessa realidade. Como venho dizendo, querem que vivamos em um mundo de censura livre, quando deveríamos buscar um mundo livre de censura.


ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...