EU SOU CONSTRUTOR!
"No que você trabalha", perguntou ela num só gole inconseqüente. Foi só então que olhei para o bar onde estávamos, para ela, para mim mesmo e comecei a narrar a longa seqüência de frustrações que terminaria, quem sabe, num conto. Mais um, sobre a tristeza da minha vida. E o vazio das minhas paixões, parágrafo após parágrafo, acento após acento, tentando dar um sentido. Sorri, para depois descrever com ironia e respondi entre orgulho e incerteza. "Eu sou escritor."
Trechinho de um conto antigo, esse, "Do Alto do Meu Cavalo", que escrevi em 2001, antes de ter publicado. Aquela coisa, ninguém precisa estar publicado para se considerar escritor, mas faz toda a diferença lidar com a "máquina poética", o meio literário, a editora, a imprensa, os colegas, os agentes, os ninjas apicultores.
Odeio quando me fazem essa pergunta numa festa. "O que você faz?" Porque se eu começar a dizer, não vou conseguir parar. E ninguém se contenta só com a resposta "sou escritor".
"Mas escreve o quê? Contos, crônicas, poesia?" Me tiram para jornalista, publicitário, revisor. E quando eu não quero responder, olham para minhas tatuagens, minha academia (que está longe de ser imortal) e concluem em silêncio: "Ah, ele é michê."
E geralmente quem me pergunta está é louco para me dizer: "Eu sou ator." Haha.
Quando eu era bem pequeno, disse para meu pai que "queria ser pianista". Ele me disse que então eu tinha de começar a estudar imediatamente. E eu, como sempre tive nojo de estudo, desisti. Só fui estudar piano mesmo uma década depois, e nunca aprendi grande coisa.
Por essa falta de talento, fui estudar publicidade (haha), um curso genérico que me concede cela especial. Em crise ideológica, no meio do curso prestei letras na USP e entrei. Mas desisti. Fiquei com o cárcere da publicidade mesmo.
Mesmo assim, não me arrependo. O que eu poderia ter feito? Não quero ser analista, analítico e professor para estudar Letras. Não quero ser jornalista, jornalítico e nem comentarista para estudar outra coisa. Sou um desocupado produtivo. Então, publicidade.
Me lembro de um encontro em Parati, que eu, Chico Mattoso e João Paulo Cuenca tivemos com o Millor Fernandes em frente às câmeras do Jornal Nacional. O senhor escritor perguntou aos petizes:
"O que você estudou, meu filho?"
Chico Mattoso respondeu: "Letras, meu mestre."
"Hum, muito bom, muito bom. E você, meu jovem?"
João Paulo Cuenca respondeu: "Economia, professor."
"Hum, interessante, interessante. E você, rapaz?"
E eu respondi: "Publicidade, tio."
E o Millor quase entrou em convulsão: "Ah, não, não, isso não!"
Haha, pior que essa história é verdade, mas graças a Deus não chegou a ir ao ar. O Millor ainda acrescentou que quem faz publicidade "não tem comprometimento com a verdade." Concordo com ele. E por isso mesmo repensei minha própria ojeriza ao curso. Afinal, EU NÃO QUERO SABER DA VERDADE. A VERDADE NÃO EXISTE. Não entendo os escritores que dizem tratar "da verdade", "da realidade". Eu só quero a ilusão.
E conheci gente boníssima na publicidade, artistas de verdade (assim como existem tantos "publicitários não formados" trabalhando como jornalistas, escritores, ninjas...).
Agora, que eu vivo de brisa, escrevo livros, faço traduções e passo fome, o que posso dizer? Me formo como escritor. E até os publicitários me olham desconfiados.
E ainda tem os próprios escritores (gente legal, como o Marcelino) que dizem que "o escritor tem de descer do pedestal". Que pedestal? Eu quero é subir! Subir! Afinal, tem arte menos glamurosa do que escrever? Eu bem que queria que fosse diferente. Ter cabelos longos e ser pianista virtuoso! Ah, mas troquei de teclado...
Só posso encerrar com um trecho de um livro infantil do Patrick Mayers, "Eu Sou Construtor" (pena que não dá pra mandar as ilustrações), sobre um menino que constrói castelos com blocos de madeira, e eles sempre vêm ao chão:
E agora, o que farei?
Será que devo chorar?
Será que devo gritar?
Será que devo chutar os blocos?
Será que devo pedir à mamãe pra fazer de novo o meu castelo?
Ou será que não devo ligar?
Não!
Vou construir meu castelo de novo.
Um castelo igual ao de um rei,
E tão alto que chegue no céu.
Pois eu sou construtor!