19/01/2005

PRA PORTUGAL DE NAVIO

Algumas pessoas me avisaram e Lu Gastão me mandou o link de matéria do Globo, da semana passada:

  • Prosa & Verso


  • A matéria conta um pouco dos autores brasileiros (eu entre eles) que estão sendo editados em Portugal pela editora Palavra, que inclusive está investindo numa "ampla campanha de divulgação" para que eles vão para lá, fazer os lançamentos. Ray-Güde, minha agente, é que cuidou disso para mim. Agora é aguardar, provavelmente para o segundo semestre.

    E quem sabe teremos "A Morte Sem Nome" em outras línguas ainda este ano...

    Para quem AINDA não leu, vai aí um "trecho de trabalho" do livro, agora um romance internacional.

    Quando me olhei no espelho, já tinha envelhecido trinta e cinco. No canto do olho, atrás de um sorriso, na frente do espelho, uma tristeza a ser escondida. Entre os dentes, as marcas das minhas mordidas. Em meus cabelos, a vida se esvaindo. Penteei fio por fio. Escovei dente por dente. Maquiei olho por olho e me olhei novamente, no espelho.

    Ainda estava lá, por trás de mim, entre os azulejos, jogado no ralo, tudo o que eu não pude esconder. Mofo nas frestas, cabelos na pia, sangue no vaso, sorrindo pra mim. Continuei a esfregar, pensando em branco. E, quanto mais esfregava, mais sangue se espalhava. E de gotas fiz uma poça. E de poças fiz um lago. Do lago fiz um mar, para me afogar.

    Me sentei na sala para fumar. Cigarro. Entre os dedos. Entre os dentes. Manchados de nicotina. Queimando com minha insegurança. Sumindo como fumaça. Cinzas ao chão, entre as frestas. Peguei a vassoura e a ordem, a ordem continuava a fugir de mim.

    Minhas pegadas me seguiam para onde quer que eu fosse. Eu não podia escapar. E minhas impressões digitais manchavam o que quer que eu tocasse. Se tornavam cinzas, pó e mofo. Minhas mãos, meus lábios, meu pescoço e meu coração. A ser esfregada, a ser varrida, a ser escovada, nenhum banho daria conta. Minhas pegadas me seguiam aonde quer que eu fosse e minhas impressões digitais estavam sempre em meus dedos.

    Nos pratos sujos. No garfo e na faca. Na cozinha, meu sangue fresco escorrendo pela pia. Detergente, sabão em pó. Lavei a louça e os talheres. Espalhei milhares de cacos pelo chão. Pela cozinha. Minhas impressões em cada um deles. Minhas impressões no ralo. Minhas impressões na faca. Minhas impressões cortando a linha, em volta do meu pescoço.

    No lixo. Jogada em pedacinhos. Virei os olhos para longe de tudo o que eu não podia mais. Suco de laranja. Ossos de frango. Um coração palpitando. Que pelo menos não vaze pela casa. Que o saco plástico resista ao meu peso.

    No quarto, arrumei a cama. Troquei os lençóis e sacudi meus orgasmos, pela janela. Pêlos ao vento. Sangue no colchão. Fronha amassada. Cada coberta trocada era um vinco a mais em meu rosto. No travesseiro. Me olhei no espelho e já não estava mais lá. Desarrumada. Troquei de roupa. Guardei o sorriso. Fechei botão por botão, cada qual na sua casa. Eu na minha, tentando fechar. Um quilo a mais, um quilo a menos. Pastéis de queijo para rechear. Vaso sanitário para vomitar. Seios pequenos para amamentar.

    Quem pergunta? Quem procura? Entre as pernas, entre os dentes. Mordidas nos seios. Pêlos na virilha. Sangue preso. Fecho solto. Barriga para dentro. Pernas de fora. Unha quebrada. Falta de cuidado. Olhei para o espelho para ver se ainda havia salvação.

    Você se tornou uma bela mulher, hein? O orgulho estapeava meu rosto e deixava marcas. Olhei atrás das orelhas, embaixo do armário. Procurei minhas meias e calcei os sapatos. Um de cada vez. Passo a passo eu consigo. Minhas pegadas ainda me seguiam, mas pelo menos eu estava de salto alto.

    Olhei para o relógio. Era tarde. Mas ainda havia todo o tempo do mundo. A vida não esperava por mim. Lá fora, que o tempo passasse. Lá fora, que o o sol se pusesse. Lá fora, que o mundo acabasse. Eu tinha tempo de acabar com o meu. Fechava as janelas e trancava as portas. Desligava o rádio e o gás. A geladeira. Bebia as últimas gotas de água. Dava a última olhada no espelho. Me sentava na cadeira e esperava. Me sentava na cadeira a esperava. Me sentava na cadeira e esperava. Esperaria o tempo que fosse, o tempo que fosse para a minha morte chegar.

    ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

    Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...