03/02/2005

A REPRODUÇÃO ASSEXUADA DOS PLATELMINTOS

Ontem teve mais uma sessão "Comodoro" do Carlos Reicheinbach no Cinesesc. Fomos eu, Daniel (Luciancencov) e a Maíra Mee (que foi estrela do meu curta, "Ame o Garoto que Segura a Faca"). Os filmes apresentados eram "Viva la Muerte", de Fernando Arrabal e "Fando y Lis", de Alejandro Jodorowsky, ambos do movimento "Pânico", criado nos anos sessenta, que mesclava surrealismo e escatologia, aproximando o cinema das pinturas de Bosch, Bruegel e Dali.

Chato.

Antes da primeira sessão, Carlão já avisou que "Viva la Muerte" era um dos filmes mais violentos já feitos. Para mim, pareceu um filme iraniano com groselha. Lá pelo final, eu já estava rezando para alguma veia ser aberta e o marasmo acabar. Daí surgiram algumas cenas fortes, sim, com animais, mas nada que chegasse nem perto de Pasolini, Fazbinder ou mesmo Takeshi Miike, que o próprio Carlão passou em outra sessão.

Saimos de lá na metade do segundo, e fomos ver "À Procura de Tadzio", de Luchino Visconti, em vídeo.

É um documentário sobre os bastidores da procura de Visconti pelo Tadzio do seu filme "Morte em Veneza". Mostra os testes que o diretor fez com diversos meninos, incluindo o próprio Bjorn Andressen, que acabou ganhando o papel. Engraçado que nos testes ele parece um pouco mais velho (tem quinze anos), eles devem ter caprichado na maquiagem para ele ganhar o ar púbere do filme.

Assisti "Morte em Veneza" pela primeira vez quando eu tinha uns 12 anos, num "Corujão" da Globo. Não entendi direito qual era a do filme. Era um filme gay? O velhote queria comer o moleque? Só com a idade, e meu coração contaminado de frescura, que entendi as sutilezas do filme, e do livro.

Filme e livro são muito próximos. Talvez, seja uma das adaptações mais fiéis que eu já vi (apesar de algumas mudanças sem importância, como na profissão do protagonista). Como eu li o livro depois de ter visto o filme, fiquei exatamente com aquela imagem do Tadzio (que foi muito bem escolhida por Visconti). É um menino de beleza cruel e assexuada, que se torna a personificação da vida, da morte e da doença.

Para quem não conhece o filme/livro, trata-se da história de uma vila de pescadores que é atacada por abelhas assassinas, que só podem ser destruídas por um garoto de coração puro.

Haha, ok, ok. É um filme sobre o amor platônico de um artista por um adolescente que ele conhece num hotel em Veneza.

Toda obra de Thomas Mann lida muito com esses temas: juventude, beleza, ideais da arte. Sempre coloca a beleza como um ideal platônico do artista. Na sua novela "Tõnio Kroeger" (sobre a qual eu fiz uma pequena resenha no "O Globo", ano passado), Mann narra a história quase autobiográfica de um rapaz apaixonado pela beleza de um colega de escola. Com o tempo, o rapaz cresce, se torna um grande escritor, mas percebe que nunca atingirá realmente seu ideal, poderá apenas contemplá-lo.

A literatura está cheia disso, "Frederico Paciência", do Mário de Andrade, "O Retrato de Dorian Gray", do Wilde, "Confissões de uma Máscara", do Yukio Mishima, todos os livros do Mathew Stadler...

Lembro de uma vez que eu estava almoçando sozinho numa praça de alimentação de um shopping, e na minha frente estavam sentados dois meninos de uns 13 anos.

Um deles era gordinho com jeito de inteligente o outro lindinho com cara de vitorioso. O gordinho virou para o amigo e perguntou: "Já assistiu a ‘Vida é Bela’?" E o galã mirim respondeu meio sem interesse: "Não, é sobre o quê?" O primeiro começou a explicar, enquanto o outro fatiava sua pizza. Eu achei aquela cena tãaaaao Thomas Mann, tãaaao "Tõnio Kroeger". Olha só um trecho:

> Tônio não o cortejava completamente sem resultado, pois que Hans, aliás, admirava nele uma certa superioridade, uma verbosidade que possibilitava a Tônio expressar coisas difíceis, compreendia bem que aí existia para ele um sentimento fora do comum, forte e delicado.
Mostrava-se grato, causando a Tônio alguma felicidade por sua aproximação – mas, também, algum pesar por ciúmes, desilusão, e pelo esforço de tentar estabelecer uma comunhão espiritual. Pois o estranho era que Tônio, invejando Hans Hansen, o seu modo livre de viver, constantemente tentava puxá-lo para o seu próprio modo, o que só se dava por momentos e, mesmo assim, só aparentemente.
Li agora uma coisa maravilhosa, algo magnífico... – disse Tônio. Andavam e chupavam balas de frutas. - Você precisa ler, Hans, porque se trata de Dom Carlos, de Schiller... Eu empresto, se você quiser...
- Oh, não – dise Hans Hansen – deixe isso, Tônio, não serve pra mim. Fico com meus livros sobre cavalos, sabe? Há neles fotografias formidáveis.<

Querem mais? Comprem! Heheh. É fácil de achar um volume com "Tônio Kroeger" e "Morte em Veneza" pelos sebos da vida.

Talvez seja impressão minha, mas acho que essa questão do platonismo é algo exclusivamente masculino. Quero dizer, esse tipo de amor platônico, porque o homem tem a atração pela beleza muito mais presente do que a mulher. Não que a mulher não possa ter amores platônicos, mas se dá de outra forma, e com outra intensidade.

Também é uma questão de platonismo muito homossexual (se eu posso colocar o sufixo "sexual" ao lado de "platonismo), pois não se trata apenas de admirar uma diferença, e sim de invejá-la. Uma certa "nostalgia invejosa", como diria Thomas Mann. É menos querer possuir o outro do que querer SER o outro.

O amor platônico não é um amor que deixa de se realizar pela falta de desejo do objeto amado, justamente o contrário. O amor platônico é um amor que só se realiza idealisticamente (ai, existe essa palavra?), porque o próprio apaixonado não consegue ou não quer concretizá-lo.

Talvez aconteça normalmente entre meninos (heterossexuais ou não), mas acho que apenas os gays se preocupam com isso ou sabem expressar em letras (ou filmes, músicas...).

Para me contradizer, comprei um livro chamado "The Boy", da Germaine Greer (que tem na capa, vejam só, o Tadzio de Bjorn Andressen). O livro fala sobre a beleza andrógina associada aos meninos. A autora defende a admiração das mulheres pelo "masculino que ainda não se embruteceu", "o menino que não virou homem". Ao meu ver, parece texto de uma pedófila. Mas se eu ler com mais atenção, talvez consiga traçar um paralelo entre o platonismo masculino e o feminino. Talvez o feminino não seja fundamentalmente "platônico" pois se realiza de uma outra forma...

É, eu entendo de amor platônico, mané. Mas já tive a minha cota. Hoje em dia, os hormônios venceram meus ideais.

E liberdade para Michael Jackson!


NESTE SÁBADO!