DONA CHICA ADMIROU-SE
Nesses dias de frio, é mais fácil ficar em casa sem grandes ansiedades, lendo e traduzindo, sem vontade alguma de colocar os pés nas ruas. Mas quando finalmente olho para fora, o dia já acabou, está escuro e essa ausência de contato com a luz me causa certo desânimo – foto depressão. Talvez seja isso que contribua para os altos índices de suicídio na Escandinávia. Síndrome de Helsinque? Já que a de Estocolmo é usada para outros casos...
E quem sabe um bom antítodo para isso seja a lâmpada de radiação reptílica que atualmente uso no meu quarto para ler - já que o Araki está se beneficiando da radiação direta do sol e eu ainda não consegui trocar a luz do teto. Talvez a radiação da lâmpada engane meu inconsciente (e minha pele) e me faça acreditar que estou passeando por aí. Quero acreditar nisso.
Meu dia começa de fato depois de escurecer. Só então almoço, me encho de cafeína e resolvo fazer algo fora de casa. Vida de vampiro? Não tenho mais sangue pra isso.
Falando em sangue e em sair de noite, ontem fui ver a peça "120 Dias de Sodoma", encenada pelos Satyros. Pesada, claro. Turbulenta, eu diria, mas de uma forma bem diferente do filme (do Pasolini) ou do livro (do Sade). Ou talvez por eu já ter lido o livro e visto o filme, a escatologia não me choque tanto. De qualquer forma, incomoda pelo excesso, a completa inversão de valores, a personificação de desejos que erguem e destroem o ser humano.
A obra do Sade é baseada nisso. E aí, ao meu ver, está uma lição importante de literatura. Os personagens não são reais, não são verossímeis, são monomotivados, mas ainda assim, verdadeiros enquanto personagens. Aliás, acredito que a construção de um personagem se dê muito por aí. Seres humanos são contraditórios. Personagens não podem ser. Então, quando se constrói um personagem baseado num ser humano, ele tem de ser mais uma personificação de um desejo daquele ser. Até quando um artista se apresenta publicamente como um personagem, ele tem de ocultar suas contradições e reforçar apenas os aspectos daquela faceta que ele deseja que as pessoas conheçam.
Ai, que merda é essa que estou escrevendo? Tá tudo errado.
Bem, voltando a peça. Ótima. A caracterização dos atores é perfeita. Os "amigos", as vítimas... Você sabe que a história é de quatro nobres que resolvem aprisionar uma piazada em seu castelo e torturá-los de todas as formas, né? Só contesto duas coisas: 1) o clímax não estar no final – ao meu ver, a parte mais forte e mais intensa acontece no meio da peça, depois ela suaviza. 2) O coral – detesto coral. Detesto gente cantando em coral. Ainda mais em teatro. E é tão comum...
Além do Sade, consegui ler várias outras coisas nesta semana de "recolhimento". Volto a elas:
MÃOS DE CAVALO – DANIEL GALERA: Romance sobre um homem formado que revê sua infância e adolescência, questionando suas escolhas e rigores. Vou ser mais um que elogia esse livro e esse autor. É um livro extremamente honesto, afetivo e bem escrito. Galera, aos 26 anos, é um autor maduro – com o que isso tem de bom e o que tem de ruim. Ao meu ver, ele está escrevendo o mesmo tipo de coisa que muita gente – só que muito melhor do que quase todos. Tem um certo parentesco com "Longe da Água", do Michel Laub ou "The Boy in the Lake"do Eric Swanson (que acho que não foi traduzido por aqui). Só falta agora ele enlouquecer.
COCAÍNA – Essa antologia de contos e crônicas organizada por Beatriz Resende vale mais como curiosidade acadêmica e história. Como literatura, não achei grande coisa da maioria dos textos, com exceção de um ou outro, como o de Ribeiro Couto ou do João do Rio. Talvez eu estivesse esperando outra coisa...
A MENINA DO FIM DA RUA – LAIRD KOENIG: Ganhei esse da querida Virgína – uma leitora leal – depois que comentei aqui no blog sobre o filme com a Jodie Foster. O livro é ainda melhor (como de costume). É mais complexo e mais bem explicado. Só que por eu ter visto o filme antes, perde um pouco o impacto. De qualquer forma, adorei. E a edição do Círculo do Livro tem uma capa tosquéeeeeeeeeerima, mas ótima, meio "pretty baby".
THE SECRET LIFE OF OSCAR WILDE – NEIL McKeena: Esse eu não terminei. Larguei no meio. Me cansou. Achei ruim. Vale como curiosidade histórica, mas se tornam enfadonhas as descrições detalhadas de cada rapazinho com quem Wilde se relacionava. Talvez eu pegue de volta em breve, só para ler as putarias, mas para ler como um romance, é chato.
Hum, que mais? Outro dia sonhei que eu tinha um gato ("miau") aqui em casa, mas não tinha dinheiro para alimentá-lo. Triste, e praticamente real. E outro dia sonhei que eu era um agente secreto submarino, que vivia mil aventuras embaixo d’água. Até que meu chefe me chamava por vídeo conferência e dizia: "A sua carreira de escritor está prejudicando seu desempenho como agente secreto..."
Ai, até nisso?