UM INVERNO NO INFERNO
Há alguns meses fui num almoço armênio, num hotel chicoso, para encontrar a família e agradar minha avó. Lá havia uma linda menininha de uns doze anos, feições indianas, que fazia origamis e me desafiava com quebra-cabeças. Ela tinha uma caixa que se desmontava, o desafio era montá-la novamente, coisa que ela fazia em dois tempos. Eu, que nunca fui muito coordenado, tentei escapar da brincadeira, mas ela tanto insistiu que acabei pegando a caixa...
E só agora caiu a ficha. A caixa. Configuração de lamentos, para quem leu "The Hellbound Heart" ou assistiu "Hellraiser". Claro, é por isso que minha vida anda tão trevosa. Mexi na caixa e chamei os cenobitas, fui para o inferno, subsolo, que a mídia moderninha chama de udigrudi, ou underground...
Haha. Estava conversando sobre isso outro dia, com uma amiga. Nós sentados num bar da Augusta, no meio das putas, Christiane F passando, minha cabeça no formol, questionando o sentido do "underground". Ora, ora, para mim parece apenas o andar térreo, caminho de casa, estação Trianon-Masp, ou o que me resta como consolação. Não que eu seja muito transgressor, afinal, quem não é? Será que existe um andar abaixo? Será que o underground tomou conta de toda classe-média ou eu que mexi na caixa e não consigo mais olhar para cima? De qualquer forma, ainda existe a Vila Olímpia, os bailes countries, coelhinhos correndo na relva. Há outros caminhos...
Ou talvez o underground esteja sob os pés de todo mundo, mas só alguns abaixam a cabeça. "Estamos todos nas estrelas, mas alguns olham para as sarjetas", diriam os neo-wildeanos.
Eu fiz uma longa viagem para chegar até aqui. Não nasci em berço de ouro, para depois ser jogado na privada. Nem fui criado às margens desta poluída cidade. Tive uma infância e adolescência ordinárias, como a maioria da minha espécie, e talvez tenha até demorado um pouco para seguir meu próprio caminho, mas não demais. Afinal, os caminhos abertos a nós sempre foram abertos por outros, não são nossos, real ou exclusivamente. Assim, enquanto minha juventude ainda fluía intensa pelas correntezas, deixei que ela me levasse e eu seguisse o seu chamado. Poderia lamentar ter desaguado num esgoto, mas, como todos os jovens, sempre quis provar o gosto dos subterrâneos.
Esse é o primeiro parágrafo de "Mastigando Humanos", uma grande sátira ao underground. Para começar, todos os personagens tem nomes de estações de metrô... E pronto. Este foi o teaser de hoje.
Voltando ao subsolo – sem Dostoiewski – tive de devolver a lâmpada de radiação UVA/UVB para o Araki. Os dias andam muito nublados e eles precisa dela mais do que eu. Mas agora não sei como vou terminar de ler Fante. Ele é um escritor meigo, não é? E me faz acreditar que a realidade não é tão Hellraiser assim. Aliás, lendo "Pergunte ao Pó", me faz pensar que a realidade hoje em dia é mais Matrix. Quero dizer, você vê o jovem escritor Arturo Bandini sofrendo com a falta de grana, a senhoria cobrando o aluguel, as cartas de pagamento que não chegam, e percebe que hoje em dia é tudo dominado pelas máquinas. Eu não tenho de passar pelo constrangimento de pedir dinheiro emprestado, de não pagar as contas em dias, é tudo feito eletronicamente. O banco Itaú vai me dando crédito, aumentando os juros e eu vou me enforcando sozinho, sem ninguém para me repreender. Eu engano o caixa-eletrônico, pago contas além do meu saldo e fica tudo no campo virtual. Ninguém bate na minha porta com a mão estendida. Ninguém reclama que eu não paguei. Vez ou outra chega um email anunciando um dinheiro que entra... Oh, a pós-modernidade...
Bem que podiam aproveitar tudo isso e fazer o filme "NEO VS PINHEAD", não seria legal? Oh, a carne de Keanu perfurada por ganchos...
Então, estamos falando do underground, estações de metrô, e da sarjeta. Estação Consolação e Uma Estação no Inferno. Estação Inverno. Notas do Subsolo. E do Pó. Ahhhhhh... sinapses assassinas...
* O título do post foi chupado de uma música do Multiplex, que por sua vez chupou do Rimbaud. Aqui embaixo, todo mundo se chupa.