01/07/2009

(RE)COMEÇANDO


Sorry, com a proximidade do lançamento, acho que vou ficar meio monotemático...

Vai aí o começo do começo:


O menino emergiu do quarto como um inseto envenenado.
Segurando-se nos móveis, nas paredes, apoiando-se no batente,
chegou até a sala tentando reconhecer o tempo e o espaço em
que caminhava, desequilibrava. O prédio estava inclinado. Mas
a isso ele já estava acostumado. O problema era o horário em
que dormira, o horário em que acordara, com uma luz indecisa
alaranjando a janela. Final da tarde ou começo do dia? Sempre
era difícil se situar, quando dormia fora do horário...

O prédio estava inclinado. Mas a isso ele já estava acostumado.
O problema era o horário em que dormira, o horário
em que acordara, fora de hora. Isso acontecia cada vez com
mais frequência, agora que ele não tinha aulas. O menino ficava
em casa, jogado pelos cantos, escorando-se na cama, deixando
o cabelo crescer. Crescia além de sua masculinidade, cada
vez mais branca, cada vez mais magra. Com uma compleição
tão delicada que — aliada a seu longo cabelo escuro — os
amigos não podiam evitar chamá-lo de andrógino. Ele não se
importava.

Sentou-se diante da escrivaninha, na sala, e ligou o computador.
A lógica e os sentidos inicializavam-se também em sua
mente. Sim, final de tarde, percebia. Ouvia o Gordo rolando
no apartamento de cima. O prédio estalando com aqueles que
voltavam para casa, aqueles que conseguiam. Via refletidas na
tela do monitor as ondas do mar lá fora. Mar negro, manchado
de piche, por anos e anos de acidentes e descasos. O menino
não se importava. Não consumia petróleo. Não mergulhava
no mar, não manchava sua brancura no sol, no piche, no óleo
derramado. Ia do quarto ao computador, do computador ao
quarto. Na escrivaninha da sala, encontrava algumas notas
que sua mãe deixara — para pedir uma pizza. Ele pedia meia
catupiry, meia champignon — e comia só metade. O Gordo
sempre tocava a campainha para comer o resto. O Andrógino
não se importava.

Abriu sua caixa postal, viu seus e-mails e começou a me
responder. Logo ouviu a batida na porta, a maçaneta virando
e o Gordo entrando no apartamento destrancado. “Oi, o que
está fazendo? Pediu pizza? Posso comer com você?”

O Andrógino balançou a cabeça em negativa — negativa
que o Gordo poderia usar para responder a quaisquer das perguntas
que formulara — em seguida apontou para o telefone,
sem desviar os olhos da tela, e o Gordo foi rolando fazer o pedido.
Tinha de tomar cuidado, pela inclinação do prédio, por
suas formas arredondadas, poderia ser ejetado ao menor deslize.
Não seria um acidente fatal, claro — os próprios suicidas
já haviam desistido de se jogar daquele prédio; para conseguir
afundar no mar teriam de ter os bolsos pesados, uma mochila
nas costas, e só aqueles sem nada a carregar é que desejam a
morte —, mas o Gordo também não queria se manchar de
óleo, (por tantos acidentes e acasos), não queria ser jogado
como uma bexiga cheia d’água no mar. Segurou-se firme nos
móveis, com os dedos amanteigados, até deixar-se cair ao lado
do telefone, no sofá.

“Vou pedir meia catupiry, meia champignon, pode ser?
Vou pedir meio a meio, não é assim que você gosta?” O Gordo
perguntava ao Andrógino, já com o telefone na orelha, soprando
a ele seu hálito lácteo de gato, de quem acabou de comer
chocolate. O Andrógino não se importava. Continuou me dedicando
bits e bytes, por trás das ondas refletidas na tela.


O prédio era inclinado. Era por isso que os meninos ficavam
tanto tempo sozinhos, pediam tanta pizza e não esperavam
seus pais para jantar. Muitos dos pais haviam saído para
trabalhar e nunca mais voltaram. “Está chovendo. Está trânsito.
Estou cansada demais pra tentar entrar aí. Vou dormir
no trabalho. Num flat. Na casa da vó. Volto pra casa no final
de semana. No próximo feriado, quem sabe. No Dia dos Namorados...”
Porque para entrar novamente no prédio era um
sufoco. Porque o prédio, de tão inclinado, perdera sua porta de
entrada. Para os meninos era relativamente fácil, conseguiam
entrar nele como se subissem numa árvore, numa casa da árvore,
num prédio inclinado. Mas os pais, com seus ternos e suas
pastas, laptops e salto alto, tinham mais dificuldade de voltar.
Desistiam. Diziam para os filhos pedirem uma pizza.

Dentro do prédio, a ordem não era ditada nem mesmo
por um zelador zeloso. Seu Antônio havia muito não era visto,
trancado dentro do apartamento. Com a inclinação do prédio,
as fundações comprometidas, sua porta havia sido obstruída e
ele não pôde mais exercer seu ofício. Já não havia mais regras
nem reguladores no edifício.

E sem pais e sem adultos, sem regras e sem compromissos,
o que delimitava as fronteiras dos meninos? Escola? Não,
nem isso lhes cerceava. Alguns meses antes, os professores tinham
entrado em greve. Não era uma questão financeira, era
uma questão de orgulho. Não podiam receber menos do que
os pais de seus alunos, porque assim se sentiriam empregados
das crianças. Não podiam conversar com mães com as quais jamais
poderiam se casar e ter filhos, porque considerariam seus
próprios filhos inferiores. Então, como uma forma de mostrar
seu poder, resolveram entrar em greve, geral, perpétua, perene,
permanente, até resolverem seus próprios dilemas e incoerências.
Muitos inclusive entraram em greve apenas para poder aumentar
a frequência das visitas ao analista. “Doutor, como eu
poderia educar crianças que são ricas demais para serem meus
filhos? Como posso acompanhar o valor de mães que jamais
teriam a mim como marido?” São justificativas desprezíveis, eu
sei, mas não tenho culpa, não fui eu quem entrou em greve.

O Governo riu, mastigando pernil. “Haha, então vamos
ver quem é mais forte. Deixem que façam greve. Não vamos
nos preocupar com isso...”

Aproveitaram a greve para fazer reformas na escola. Na verdade,
para fingir que faziam reforma. Faziam, mas fingiam.
Derrubavam uma parede, para construí-la novamente. “Precisamos
movimentar a construção civil, não é? Sabe quantos
novos empregos essa greve gerou?” Então, os trabalhadores
braçais pressionavam o governo para que as reformas continuassem.
Os professores continuavam com o orgulho ferido,
por sua greve não ter sido respeitada. As crianças se arrastavam
durante os dias. E os pais... os pais no fundo agradeciam por
não gastar mais com material escolar.

“Aproveite essas férias para ler um dicionário, hein?” “Tem
programas bem educativos na TV.” “Se você assistir aos canais
certos, nem vai sentir falta das aulas.” Eles se convenciam, já
que os filhos não precisavam ser convencidos. E assim iam trabalhar;
as crianças ficavam em casa, saíam para a praia, andavam
pelas ruas, e deixavam os adultos sem filhos com medo do
que poderiam aprontar.

(Este é o começo do primeiro capítulo - que tem 15 páginas, então não tem como postar inteiro aqui - só um aperitivo. O banquete fica pra dia 4 de agosto, no Volt.)

NESTE SÁBADO!