30/09/2009




O verão acabou logo. Menos de um ano depois já havia ido embora completamente para tornar tudo o que incomodava mais risível e tudo o que prometia mais desejável. Na verdade, foi-se em poucos meses, em poucas horas, segundos, e quando os meninos abriram e fecharam os olhos, um vento frio já varria a areia para dentro do mar e os turistas para fora, devidamente agasalhados, de volta para seus ônibus e para longe da cidade. Todos se foram.

Graças a Deus, diriam meus eleitos.

A mudança dos tempos e dos ventos sentia-se também pelos estalos do Prédio, a estrutura se conformando a novos climas, novos sentidos, que às vezes pareciam não fazer sentido algum. As aulas não voltaram, a greve não acabou. O que quer que os professores tenham decidido na assembleia, não teve interferência prática no ócio dos meninos. Agora eles viviam um ócio polar, longe da praia, sem a possibilidade de férias. Era um sentimento mais solitário, mais melancólico, como se tivessem de fato sido esquecidos, desprezados. Uma coisa é você se sentir livre quando percebe a possibilidade de encarceramento, outra é a liberdade fruto de total falta de escolha. Não havia nada a fazer. Nenhum professor a repreendê-los. Ninguém a dizer o que eles poderiam se tornar, o que deveriam desfrutar. Eram garotos perdidos, meninos congelados, esquecidos no fundo do freezer, atrás dos hambúrgueres, ao lado de uma garrafa de
vodca vazia.

Assim estava o Andrógino, na frente de seu computador. Olhava a tela, mas não conseguia ver muita coisa além. Não conseguia ver as ondas e o mar e a praia, refletidos como sempre, apenas vídeos, emails, sites de relacionamento e meninos de franjas lambidas, exibindo-se em fotos caseiras em páginas sem vírgulas nem acentos. Isso também cansava. Entediava. E fazia o Andrógino perceber que faltava algo por trás, o movimento de sempre. Onde estavam as ondas nas quais seus olhos estavam acostumados a navegar?

Foi compelido a virar a cabeça e o corpo, caminhar até a janela e de lá examinar diretamente a vista, que estava escurecida, uma luz tênue que só poderia mesmo ser captada a olho nu. Os seus estavam. Talvez ainda mais nus pela radiação intermitente da tela do computador, que ia destruindo suas camadas e películas, criando um olho mais sensível e vulnerável, que ele poderia usar de desculpa para não mirar cenários verdadeiros. Mas agora era preciso. Ele precisava observar o mundo lá fora e constatar que as coisas estavam diferentes. E a diferença que fazia, para ele ao menos, era positiva.

O mar estava congelado. Talvez por isso ele não tenha conseguido observar suas ondas na tela do computador. O mar era uma estática mancha preta de piche, um enorme borrão numa tela sobre a qual antes havia ondas pintadas. A areia, por sua vez, estava coberta de neve, soterrada, tornando impossível para qualquer um requentar pizzas antes de entregá-las.

Por que então o Entregador e seu Patrão não aproveitavam a oportunidade para construir um iglu e entregar sorvetes? O Andrógino Apático sentiu um arrepio. Depois outro. E arrepio após arrepio, percebeu que teria de fechar a janela. Quem sabe, inconscientemente, a necessidade de fechá-la foi o que o atraiu em primeira instância? Agora que ele observava através dela, percebia que não poderia ficar naquele quarto com a janela aberta por muito tempo. Fechou-a. E continuou observando através do vidro embaçado — o que tornava tudo mais irreal, de certa forma como olhar para sua tela do computador. O cenário lá de fora tornava seu quarto lá dentro mais rarefeito, mais contraído, mais estático, com todas suas quinas e protuberâncias e rebarbas mais afiadas, seus ossos mais desprotegidos. O frio que fazia o ameaçava. No frio que fazia, qualquer topada num pé de mesa machucaria.

Topadas. Pés. Pegadas. Havia pegadas sobre a mancha negra do mar que ele observava. Pegadas de seres que atravessaram o mar, agora sólido. E algumas pegadas vinham direto para a Torre, de quem seriam? Quem teria vindo do outro lado do oceano para se abrigar ali com eles? Fugir do frio, em grandes passadas. Pés grandes. O monstro das neves?

O monstro das neves... Um monstro polar. Um monstro pálido e escandinavo que, apesar de escandinavo, poderia ser chamado de monstro por causa dos pelos que o incomodavam, pela garganta que rugia, pelo alcoolismo que o embriagava, tudo detestável, ainda que nórdico. Ele rugia. Rugia com a mulher. Rugia com o filho. Rugiria a tal ponto que os atacaria (ou seria o próprio rugido interpretado como ataque?). Então delegacia da mulher. Vara da infância e adolescência. Mãe fugindo com o filho, se escondendo numa cidade litorânea, num prédio inclinado. Explicaria muita coisa. Explicaria por que um menino desde cedo se torna tão apático, e tão andrógino. Explicaria por que aqueles pés grandes seriam tudo a ser evitado. Pés grandes seriam tudo o que ele não desejaria, seguindo seus passos. Podofobia. Pés grandes correm mais riscos de topadas frias.

(Trecho de "O Prédio, o Tédio e o Menino Cego". Vai lendo aí que já volto.)

ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...