17/05/2010

KAFKA FOR DUMMIES


Além de "Mastigando Humanos," não me faltam textos falando de cobras, jacarés, répteis em geral. Lembrei hoje de um dos primeiros, de anos e anos atrás, acho que meu primeiro conto publicado, inclusive, na revista literária "Ficções", organizar pelo Heitor Ferraz. Hoje acho tolinho-tolinho, mas bonitinho. Da época que eu não assumia (ou não sabia) que fazia literatura pop. Serve como homenagem para o Instituto Butantan.

PÓ DE VIDRO E VENENO DE COBRA

“Hum, cicatriz feia. Piercing?” Foi. Mas havia algo mais. E por isso é que eu pedia para o doutor examinar. Não via nada além, uma película, uma membrana, algo que lembrasse um órgão estranho?

“Não, acho que não...” e ele me deixou com receita de Bepantol.

Eu caminhei de volta para casa sentindo todos os calafrios e arrepios que sentira desde aquela manhã de segunda. Desde quando olhara no espelho e notara um terceiro orifício, pouco acima da minha narina esquerda, onde antes havia apenas uma esquecida cicatriz.

Acordara perturbado, fritando na cama. Levantei-me para o banheiro, olhei no espelho, procurando sequelas. Lembrei-me da noite anterior, a ressaca não me faria esquecer. Lembrei das coisas horríveis que eu dissera e fizera, e que naquela manhã apareciam como um furo a mais em meu nariz. Uma terceira narina.

Será que não esteve sempre lá? Será que não estivera lá desde quando eu decidi furar o meu nariz? Coisa de adolescente. Uma argola. Depois de abandonada, nunca mais pensei no assunto. O furo quase se fechara, quase. E então abrira novamente, como um crime reincidente.

Refleti na frente do espelho. E, naquele momento, senti o primeiro arrepio. Passava pela espinha. Pela minha narina. Mas vinha dos canos. Sentia a água que descia lá de cima, da caixa d’água, passando por todos os apartamentos, prestes a escorrer pelo ralo. Ela esperava por mim, com a torneira fechada. Eu podia sentir seu frescor. Podia sentir como estava gelada, antes mesmo de entrar em contato com a minha pele. Eu sentia o frio da água.

Abri a torneira e constatei. Lavei o rosto. As minhas narinas. Fechei a torneira e senti a brisa. A brisa que vinha da sala me chamava.

Eu podia fechar as janelas, as torneiras, o registro. Podia me enrolar nas cobertas, embaixo da cama, no chuveiro. Ainda sentiria todo o clima externo circulando pelas minhas veias. Sentiria o frio penetrando pela minha nova narina.

Durante o dia inteiro trabalhei assim. Achando que era apenas o clima, a gripe, talvez, um resfriado. Trabalhei o dia inteiro com calafrios pela espinha, suores na testa, algo estranho que se passava comigo. Quando a noite chegou, olhei novamente no espelho. E tive certeza do que era aquela narina: uma fosseta loreal.

Sim, como as serpentes, eu podia sentir. Eu podia sentir cada mínima variação de calor, graças à terceira narina que se abrira no meu rosto. Era para isso que servia. Para enxergar sem luz, para sentir sem o tato, para escutar sem som. Um sexto sentido, se abrindo em meu rosto, como cicatriz.

De onde veio? Eu não tinha a menor dúvida. Da noite anterior, do pó, da cocaína. Abrira aquela fenda em meu nariz, perturbara todos os meus sentidos. Sempre soube dos efeitos colaterais, mas nunca esperei que fossem como esse. Animalizando-me. Transformando-me num réptil. Era um castigo divino realmente, para me lembrar de meus pecados. A serpente na Terra, no meu corpo, oferecendo-me o conhecimento. Um sentido a mais em minha vida, expulsando-me do conforto de meus 36oC.

Pois a noite inteira eu sentia os carros que passavam pela rua. Esquentavam-me os seus motores mais do que me despertavam os seus ruídos. Até os ratos dentro dos bueiros. Até o calor dos minutos passando no rádio relógio.

Mas poderia ir além, eu sei. Conhecia muito bem daquele assunto. As fossetas loreais só estão presentes nas serpentes peçonhentas. Peçonhentas. Venenosas. Quem sabe também não seria eu? Bastava eu morder a língua. Bastava eu falar mal. Bem sei quantas besteiras eu disse - oh! - naquela exata noite anterior. Bem sei quanto veneno destilei. A fosseta poderia ser o primeiro passo, para em breve eu me arrastar...

Mas ainda podia ser racional. Antes de culpar Deus e o Velho Testamento. Antes de me perder de vez em meus tormentos. Poderia tentar descobrir motivos objetivos que me deixaram daquela forma. Sim, pois eu também sabia o que misturavam à cocaína. Eu bem sabia o risco que corria. Veneno de rato e pó de vidro. Bicarbonato de sódio e lidocaína. De onde vem tudo isso? De farmácias, laboratórios. Quem sabe sintetizado das mãos de um herpetólogo? Num becker sujo, com veneno de cobra. Num espelho antigo, com antigas escamas. Foi assim que eu me contaminei. Foi assim que eu me transformei. Ninguém nunca soube o efeito das drogas misturadas ao veneno de cobra. Mas eu descobri.

E novamente me olhei no espelho sentindo os canos d’água chamarem por mim.
Outra coisa também poderia ser. Neurônios queimados. Apenas o efeito psicológico em meu cérebro, me fazendo acreditar que sim. Me fazendo acreditar numa fosseta, quando havia apenas uma cicatriz. Tirando a minha razão e me fazendo agir como um animal. Uma serpente. Pronta para pular sobre o traficante. Sentindo de longe ele suando frio. Pulando em sua garganta e dando o beijo da morte. Tomando de volta o que era meu.

Ainda efeito da ressaca. Eu dormiria e tudo seria esquecido. Eu acordaria e tudo estaria cicatrizado. E nunca mais tomaria drogas. Nunca mais cometeria pecados. Nunca mais teria vontades, nem visitaria o Instituto Butantan. Seria um bom menino, mamífero. Ouviria a minha mãe.

Só que nada mudou, veja só. Hoje já é quarta, e a fosseta continua lá. Estudei mais sobre o assunto. Me aprofundei ainda mais em meu nariz. Deveriam ser duas, uma de cada lado, mas não é assim comigo. Eu deveria ser animal noturno, caçador, mas quem sabe não sou? Também deveria eu ser pecilotérmico, com sangue frio, para não ser contaminado por minha própria temperatura. Talvez seja isso o que causa minha maior confusão. Talvez seja isso que cause o frio na espinha. O fato de que eu sinto as temperaturas externas em comparação com a minha própria. E talvez seja isso que me cause essa febre, hipotermia, febre, hipotermia...

Ah, como vou seguir com isso no dia-a-dia? Como venho seguindo desde segunda-feira, você me pergunta, mas não há grande revelação. Já fui ao médico e ele não entende o meu drama. Ninguém me levou a sério no Instituto Butantan. Meus amigos apontam minha espinha, uma verruga, desmontariam em gargalhadas escaldantes, se eu mencionasse a palavra “fosseta”.
A verdade é que esse sentido em seres civilizados não tem nenhuma serventia. Eu não passo de mais um viciado tremendo pelas ruas. Passo como em crise de abstinência, morrendo de medo da próxima brisa. Talvez me falte um furo a mais para direcionar. Talvez falte experiência. Mas, sinceramente, eu não sei o que fazer com essa fosseta. Quem sabe uma gripe para obstruí-la?

Como lucrar com minha fosseta?

Eu poderia fiscalizar os produtos nos supermercados, se estão bem acondicionados, se os freezers estão funcionando. Poderia determinar períodos de fertilidade, quando as mulheres elevassem suas temperaturas. Eu poderia trabalhar em hospitais, nas piscinas de clubes, em firmas de ar-condicionado. Eu poderia ser um Deus entre inuítes, mas escolhi ser escritor! Escritor! Escritor!

E é por isso que essa condição ofídica só envenena minha própria arte. Veja só, meu amor, estou aqui há mais de vinte parágrafos tentando expressar meu drama. Estou há meses esperando por essa oportunidade e tudo o que posso lhe contar é uma história absurda sobre minhas próprias narinas! O que foi feito da minha veia romântica? O que foi feito do meu cinismo oliviano?

Comecei este texto mesmo com a palavra “piercing”, na primeira linha. Quanto falta para ser
intoxicado de vez pela literatura pop? Nem consigo mais passar o calor de um amor em meus texto. Não posso fazê-lo vibrar pelo vento de uma história. Afinal, é esse meu estado irracional, que chamam de pós-modernismo. E é esse veneno que hoje também sou capaz de destilar.
Mas já tenho a solução. Pode chamá-la de Ficção. É tudo o que eu pude fazer, e não deixe de ser um relato exótico, bem próprio dos jovens escritores, como eu. Sinto muito se lhe dei outras esperanças. Talvez eu não devesse ter insistido tanto naquele último domingo. Mas foi a cocaína.

Veneno. Ela me fez acreditar...

Então agora é só largar o teclado e investir numa nova carreira. À minha frente, vou descobrir aonde ela pode me levar. Quem sabe não decido mesmo ir cuidar das piscinas? Quem sabe não decido ir viajar. De repente, se abre uma nova fosseta, dessa vez em estéreo, e eu poderei me direcionar para algo mais quente, consistente, poderei mergulhar? O importante é descansar esses dedos, meu amor, e parar de insistir. Sou apenas mais um réptil peçonhento. É melhor que eu aprenda a rastejar.

NESTE SÁBADO!