Acabou de sair uma linda edição de "O Mágico de Oz", pela Leya/Barba Negra, com o texto original integral, na tradução minha.
Foi um trabalho bem gostoso de fazer. É um texto bastante infantil, no melhor sentido, e eu me sentia como se estivesse contando a história para uma criança, procurando deixar a tradução o mais leve possível.
Como não tenho filhos nem sobrinhos, estou quase dando o livro para uma criança no semáforo.
Outro livro que li esses dias, por puro prazer, foi o "Ilusões Pesadas" do franco-pitéu Sacha Sperling.
É o relato de um adolescente de catorze anos (escrito quando o autor tinha dezoito), vivendo uma relação obsessiva com um colega de escola, Augustin. Livro perfeito para adolescentes gays com paixões platônicas por amigos HT, ou mesmo para essa juventude desregrada de hoje (ahaha, falou o tiozinho) que já está nas boates com catorze anos, com chapinha no cabelo, cara toda maquiada e o nariz afundado no pó.
"Não tem umas horas em que você tem vontade de se mandar?" Augustin me pergunta isso enquanto comemos um sanduíche na ponte cujo nome eu não sei. Ele olha o Sena. Quero dizer a ele que sim, que essa ideia me obceca. Partir. Todo mundo quer fugir aos catorze anos, né? Respondo que gostaria de fugir e voltar todos os domingos.
O livro causou furor na França, pelo conteúdo pretensamente auto-biográfico e pela idade do autor, é claro. Mas longe de ser literatura marginal - não tem nada realmente chocante no livro, a proposta não é essa; e afinal, foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras, não é? - ou uma grande novidade literária, a beleza do texto está no lirismo, na delicadeza com que o narrador descreve sua relação com Augustin - que nos denuncia essa paixão antes mesmo do personagem se dar conta.
É seu gosto pelo segredo, pela mentira, que lhe permite manter uma certa superioridade sobre mim.
Lindinho-lindinho. Assim como o autor, é claro, o que faz toda a diferença. É o exemplo perfeito de um livro que só poderia ter sido escrito por um jovem, e da importância de que se publique ainda cedo (ao contrário do que pregam autores mais conservadores, vide Lygia Fagundes Telles.)
Sperling. Mandou bem, moleque.
E para terminar, recebi aqui em casa esses dias da Editora Globo a "Coleção Agatha Christie". São três clássicos - "E Não Sobrou Nenhum", "O Assassinato de Roger Ackroyd" e "Cinco Porquinhos", com orelhas escritas por autores contemporâneos. Eu fiz o "Roger Ackroyd" e o que haviam me pedido tinha sido algo próximo da ficção, uma orelha menos convencional. Então entreguei isso:
Dizem que quando a gente morre todas as histórias de nossa vida passam em nossa mente. Eu me lembrei disso quando senti a faca entrando. Minhas próprias paixões, conquistas e fracassos, emaranhadas com aquelas que vivi como leitor. Não conseguia diferenciá-las, principalmente porque ainda estava concentrado em continuar respirando. Ele enfiou a faca novamente - e outra vez - depois parei de contar. Eu vim ao chão, ele seguiu para a porta. Meu assassino me deixava para completar sozinho a história. Não fazia sentido, minha própria morte, uma trama à qual eu não poderia dar final. Me lembrava de tantos romances policiais – sempre com um grande desfecho, uma grande virada, motivos e encaixes que davam poesia a uma morte. Naquele momento, eu só queria chegar ao telefone, chamar uma ambulância, ligar para minha irmã e perguntar qual era mesmo o nome daquele livro da volta do Detetive Poirot? A memória é um lento rastejar. E eu estava tirando tudo do lugar - apagando digitais, manchando pegadas, destruindo pistas que narrariam minha vida, meu assassinato. Sem mais poder seguir em frente, permaneci deitado no chão de tacos, meu sangue se infiltrando nas frestas, misturando-se a fios de cabelos, restos de insetos, lágrimas de outrora. Ficaria ali, para contar minha história? Ou seria tudo esquecido, enxaguado, reformado com um novo piso? No meu último suspiro, apenas um desejo: como eu gostaria que minha morte tivesse sido escrita por Agatha Christie.
Mas não passou. O editor disse que ficou pouco convencional, perto do que os outros autores entregaram, e me pediu uma orelha mais normalzinha. Ficou essa:
Dizem que quando a gente morre todas as histórias de nossa vida passam em nossa mente. Mas será que fazem sentido? Uma vida inteira, ou um assassinato. Será que naquele instante derradeiro tudo se encaixa num clique e tem-se a impressão de que a história está completa, tudo foi cumprido, era esse mesmo nosso final, tramado desde o começo? Com tanta violência, tantos assassinatos, nós, que aqui restamos, ainda estamos procurando sentido. Somos como um Detetive Hercules Poirot... mas jogados num romance surrealista. As pistas não se juntam, os motivos são banais, não há o toque de planejamento, de genialidade, a beleza de uma morte bem pensada, o assassinato no momento exato... Relendo hoje “O Assassinato de Roger Ackroyd”, vejo como falta propósito em nossas vidas... ou nossas mortes. Como tudo seria mais interessante se fosse realmente um hábil quebra- cabeças, deixado a desvendar para os mais atentos, ou os perseverantes, que seguissem até o final. A vida compreendia pelos leitores. E tudo com um fino humor inglês. Não sei que histórias passarão em minha cabeça quando a faca finalmente entrar nas minhas costas. Mas adoraria que minha morte tivesse sido escrita por Agatha Christie.