20/07/2011

ISSO NÃO TEM NADA A VER COM CLARICE





No meu aniversário de catorze anos, ganhei um buquê de lírios. Achei lindo. Primeira vez que eu ganhava flores. Presente do meu primo Paulo – primeira vez também que ele comprava um presente com o próprio dinheiro. Mas minha mãe disse que eram flores fúnebres, flores de enterro. Não me importei. Aos catorze anos a ideia de morte me era tão abstrata quanto a fotossíntese, e certamente quando eu morresse não faria diferença para mim quais flores estariam sobre meu caixão. Os lírios mereciam minha gratidão. Coloquei-os num vaso antigo que nunca servira para nada, e dentro do meu quarto, sob a janela, ao lado da minha cama.
De noite, minha mãe veio colocá-los para fora.



“Durante a noite, as plantas respiram; não é saudável dormir com uma planta ao lado da cama. Ela acaba lhe roubando o ar, empestando o ambiente com esse perfume, sufocando-a; vou colocar o vaso no jardim.”


Mas o jardim não precisava dos meus lírios. Estava vivo. Com plantas enraizadas, árvores e rosas de todas as cores. Não é esse o charme de ganhar um buquê? Levar para dentro de casa um pouco da vida e da natureza que há lá fora? Colocar um vaso no jardim, para mim, era como levar sanduíches a uma festa. (Trecho do meu "Trepadeira" @ PORNOFANTASMA)




Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, é um dos livros da minha infância. Narra as peraltices de uma menina loirinha, a Sofia, que vive como filha única numa mansão cheia de pagens, empregados, e que toca o puteiro roubando chocolates da mãe, comendo o pão dos cavalos, derretendo a boneca de cera no sol e assassinando peixinhos dourados. Tem o bondoso primo Paulo, que sempre tenta assumir a culpa para livrá-la, e uma mãe meio carrasca, que vira e mexe lhe dá uns cascudos e uns castigos, junto a uma lição de moral:


"Não sabe o que quer dizer seu sonho, Sofia? É que o bom Deus a previne de que, se continuar a fazer maldades, só terá aborrecimento, em vez de alegrias. Aquele jardim enganador é o inferno. O jardim do bem é o paraíso. Pra chegarmos ao paraíso temos de andar por um caminho difícil, privando-nos de coisas de que gostamos, mas que são proibidas. Mas acontece que agente acaba acostumando a ser obediente, meiga e bondosa e não se sofre mais quando não se faz o que se quer." (de "As Frutas Cristalizadas" @ Os Desastres de Sofia)


Eu já li com uma visão bem irônica, na verdade, já peguei com uns dez anos de idade, herdei da minha mãe, e o livro é excessivamente burguês e moralista. Mas a linguagem e os valores da época (meados do século XIX) deixaram o texto mais delicioso para mim.


Então, quando estava elaborando os contos de PORNOFANTASMA, pensei numa versão adolescente-perversa de Sofia. Esse discurso moralista colocado na boca de uma primazinha crente do mal; o primo Paulo já como um adolescente bagaceiro. Eu tinha muitos contos do despertar da sexualidade masculina, queria um conto mais feminino, com a sexualidade perversa que faz parte de todo o livro.



"O toque do Diabo é um sinal de Deus, Sofia. Ele existe para não nos desviarmos do caminho, para sabermos quando estamos sendo desviados. Se você pega o caminho errado, Ele está lá, tocando você, fazendo-a sentir na pele, para que possa voltar a tempo ao caminho de Deus. Acha que o Diabo não queria ter apenas palavras macias e carícias para te seduzir? Mas
Deus lhe deu dedos de taturana, língua de água-viva...”
("Trepadeira" @ PORNOFANTASMA)


O clima onírico do conto foi intensificado por meus próprios pesadelos - especialmente um que eu tive depois de uma noite pé na jaca em que assisti ao genial curta "Bugcrush" que trata, vejam só, do despertar da (homo) sexualidade (masculina) e de taturanas alucinógenas. Tem também as águas-vivas de Florianópolis e do livro A Garota dos Pés de Vidro, do inglês Ali Shaw, um dos meus favoritos entre os que traduzi.


A inconsciência veio como águas-vivas. Cercavam meu barco. Fui mergulhando no sono com elas por todo lado, medusas, gelatinando meus sonhos. Começava a ficar arriscado me deixar levar. E se o barco virasse? Me queimaria naquele sagu abissal. Eu permanecia no barco de olhos abertos, não querendo dormir, olhando o céu que também ia se nublando, nublando... Minha prima estava no barco comigo. Estava deitada, já dormindo. Sua respiração profunda ia arrastando as nuvens para perto do barco, sugando partículas líquidas de um mar de águas-vivas... O céu ia se carregando de umidade, nuvens densas, mas que não despencavam. Elas iam se acumulando, nos envolvendo, e o ar ficava cada vez mais pesado, as nuvens cada vez mais baixas, flutuávamos numa neblina espessa, um oceano de orvalho; em certo ponto ficava difícil dizer se as águas-vivas estavam acima ou abaixo de nós. A umidade grudava em mim como suor, escorria pelas minhas pernas. Eu queria gritar à minha prima para parar de respirar, que estava atraindo as nuvens e eu iria sufocar, mas eu não tinha nem fôlego para vencer aquele ar denso com palavras... ("Trepadeira")




Meus pesadelos têm sido cada vez mais produtivos. Vários dos contos do PORNOFANTASMA vieram assim - alguns inteiros (como o do dragão), outros apenas a premissa, e outros uma ou outra cena (como um sonho do protagonista de "Max e os Felinos", que foi um sonho que eu tive.). Tá eu sei que é bem clichê dizer isso, muitos escritores (especialmente de terror) se inspiram por seus pesadelos, mas é verdade, ué.


Final de semana passado eu passei na Esbórnia, quando devia estar escrevendo. Mas enquanto fritava na cama, meio dormindo, meio acordado, acabei tendo um argumento perfeito para um conto longo. Agora vem a parte a racional e a disciplina; estou mergulhando numa pesquisinha e escrevendo....



"Os Desastres de Sofia" também é o nome de um conto da Clarice Lispector, sim, também a inspirou, mas que eu nunca li. Vira e mexe me comparam com Clarice - e eu deveria me sentir honrado - mas é como comparam qualquer mulher que escreve com Clarice, haha.



Na verdade, não sou muito fã de Clarice, não. Acho que ela tem grandes obras, é claro, é uma grande escritora, mas aquele sentimentalismo minimalista não é muito minha praia... E para mim, um dos melhores exemplos de que nenhum escritor é infalível, e de que Clarice está longe de ser invencível, é um continho que achei há anos em "Os Melhores Contos de Clarice Lispector" (da Global), que dá para reproduzir inteiro aqui:


ANIVERSÁRIO


- Amanhã faço dez anos. Vou aproveitar bem este meu último dia de nove anos.


Pausa, tristeza:


- Mamãe, minha alma não tem dez anos.


- Quanto tem?


- Só uns oito.


- Não faz mal, é assim mesmo.


- Mas eu acho que se devia contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morido mas era com setenta anos de corpo.



(Puta merda... Sorte nossa que Clarice não tinha blog...)

NESTE SÁBADO!