TRÊS GRANDES NOVELAS -
TRÊS PEQUENOS ROMANCES
Tive uma daquelas temporadas de só ler contemporâneos. Alguns eu não gostei - então não vou citar aqui; teve um ótimo romance inédito de estreia para o qual fiz o prefácio - então coloco quando for publicado; e teve ainda os três que comento a seguir.
O que é um romance? O que é uma novela? Discuti isso no post anterior. O novo romance de Andréa del Fuego e o de estreia de Guille Thomazi poderiam ser considerados novelas - pelo tamanho e pela estrutura (focam um episódio num curto espaço de tempo). O novo do Michel Laub, embora curto, tem mais estrutura de romance não-linear - um período mais longo, entrelaçando diversos momentos de um mesmo personagem. Mas a rigor isso não importa muito, os três são grandes novelas, grandes romances pequenos.
Já era tarde avançada quando os cachorros anunciaram que vinha alguém. Caminhei até a janela e vi que meu filho vinha a galope. Mais cedo do que o esperado. Meu coração apertou quando vi que ele vinha sem a Isabel na garupa. Ele surgiu pequeno através da janela. A princípio eu quis interpretar que era uma brincadeira deles, ele a cavalo fugindo dela, ela reclamando e depois ele voltando para buscá-la. Mas ele não parou, nem olhou para trás. Súbito percebi que estava prendendo o fôlego, esperando que a imagem aumentasse para poder distinguir no seu rosto algum auspício para meu alívio, mas não. Não foi o que vi.
Guille Thomazi é um jovem catarinense que lançou no primeiro semestre seu livro de estreia, Gado Novo, pela 7 Letras (que já foi casa de estreia de grandes nomes dessa geração, como Ana Paula Maia, Veronica Stigger e Carola Saavedra, entre outros). É uma novela rural-pecuarista, na qual o assassinato de uma menina é visto por diversos pontos de vista espalhados pelo campo. Com frases curtas, diálogos indiretos (que salvam a narrativa de qualquer tom paternalista ou falso de "linguagem do homem do campo") Thomazi constrói uma narrativa de forte densidade poética, que justifica e sustenta a brevidade do livro (de 66 páginas). Mais um trecho:
Um engole o cuspe, o outro cospe em demasia. O de sotaque paraguaio fuma cigarro de pala. Olho de vidro, cicatriz na cabeça nua sob o chapéu surrado. De pele curtida de sol e poeira, fala mansa e voz grave. Engole o cuspe. O mais jovem limpa e corta as unhas com o facção e evitar olhar nos olhos. Cospe. Feio e dentes podres. Subalterno. Ainda não fumou. Botas limpas de couro de potro. Guarda o facão, responde minha pergunta e não lhe vejo os olhos. Mira o horizonte. Cospe. Galpão organizando, conquanto sujo.
São imagens telegráficas que criam um cenário muito rico, cinematográfico. Um roteirista habilidoso, que se dispusesse a destrinchar a estrutura eminentemente literária do texto poderia transformar Gado Novo numa bela obra cinematográfica.
Ótimo. Não conheço Guille Thomazi pessoalmente - o livro veio por assessoria de imprensa - mas é daqueles novos autores que respondem a pergunta: Quem mais que está aí, que ainda não está nos holofotes? Que talvez devesse estar aparecendo mais? Eu, apesar do meu alcance restrito, quando encontro um desses não posso deixar de divulgar.
Gilsinho precisa entender que a mãe dele é chegada em homem, ele não precisa ficar ameaçado por ser um. Sendo filho, ele está em lugar privilegiado. Ele terá amor, mesmo que eu o odeie.
Esse é o tom mordaz, irônico e por vezes absurdo do novo livro de Andréa del Fuego, As Miniaturas. Pelo olhar de uma mãe taxista, de um filho frentista e um "oneiro" - um funcionário que trabalha no campo dos sonhos - del Fuego desconstrói as fronteiras entre o surreal e o cotidiano, o onírico e o banal. É algo como uma "capirinha de Kafka", ácida mas deliciosa. Os capítulos passados no campo dos sonhos - num edifício onde os oneiros trabalham sobre os sonhos dos personagens - na verdade me interessaram menos, porque os capítulos "cotidianos" já têm um humor tão absurdo e delicioso, que revelam o verdadeiro talento de del Fuego, e não precisariam escancarar para o surreal. De todo modo, ela confirma uma voz muito própria, e uma inventividade genial como contadora de histórias.
É preciso alguma coragem para se machucar de propósito. Algumas pessoas passam a vida toda sem conseguir aplicar uma injeção em si mesmas. Não é qualquer um que tira um espinho usando a ponta de um canivete. É mais fácil pensar em tomar um frasco inteiro de remédios para dormir para sempre sem sentir nada do que bater uma porta no dedo indicador.
E só Michel Laub poderia lançar um romance chamado A Maçã Envenenada e ser levado a sério. Seu protagonista é um jovem fã de Nirvana que analisa a ascensão e morte de Kurt Cobain em contraste com o final de sua própria adolescência, o relacionamento com a namorada, a banda de amigos, o período no exército e uma viagem para Londres. Com um tom por vezes jornalístico, Laub faz pensar quanto daquilo tudo é fato (e relacionado com sua própria biografia), o quanto está a serviço da literatura.
Conversei recentemente sobre isso com um grupo de oficineiros - uma menina me apontou que tinha a impressão de que essa geração (a minha geração) só escrevia sobre si mesma, que era mais uma questão de ego do que literatura. Eu discordo em parte. Acho que há muitos livros com protagonistas próximos de seus autores, mas, nos bons casos, isso vem a serviço de uma história e confere uma verdade única ao texto - bem preferível do que autores que adotam tons falsos para tratar de algo que não conhecem bem. É essa proximidade com o biográfico que torna textos, como o de Laub, tão íntimos, e que os expandem muito além da autobiografia.
Michel Laub é pouco mais velho do que eu - e lendo seu livro parecia que eu acompanhava visões paralelas, às vezes coincidentes, às vezes tão distintas das que eu mesmo tive em 1993-1994. Nunca fui fã de Nirvana, mas obviamente vivi nesse período, também já morei em Porto Alegre (onde se passa grande parte do livro) e estive na Inglaterra em 1994 (mesmo período do personagem - e enquanto lá ecoava para ele a morte de Kurt Cobain, eu descobria o brit pop, e as verdadeiras bandas da minha vida - como Suede).
Acima de tudo, A Maçã Envenenada é uma bela amostra da estrutura literária Laub - que tem uma trama muito bem definida, contada de maneira não-linear e entremeada de digressões. Eu gostaria de saber mais como foi armado o romance (se houve uma escaletagem prévia, se ele alterou capítulos de lugar, etc). Gostei bem.
E ainda tem tanta gente com quem estou em falta, tanta gente lançando livro este ano - para aproveitar Frankfurt, a Copa, o fim do mundo - mas vou dar uma pausa para voltar aos clássicos - tantos que ainda faltam ler da biblioteca básica - vamos ver para onde sigo.