03/06/2014

PRIMEIRO CAPÍTULO




Era a casa da mãe, não a sua casa. Ele nunca morara

lá. Não brincara em suas escadas, não crescera entre

aquelas paredes. Não esfolara o joelho em seu chão

nem contemplara o teto em noites de tempestades,

em madrugadas insones. Ainda assim, não deixava de

ser estranhamente familiar. Estranho, mas familiar.

A mesa em que estudara, na sala; uma quina em que

tantas vezes topara; móveis da sua infância, talheres

de vidas passadas, estantes, lombadas, lembranças dispersas

reorganizadas num novo espaço, sob um novo

teto. Era o que a mãe realmente fora, ou aquilo que

se tornara, longe dos filhos, em sua verdadeira casa.

E era tudo o que sobrara.



O que fazer com tudo aquilo? O que fazer com o

cadáver de uma casa, uma vida, a mãe morta? Enterro

ou cremação? Criogenia ou canibalismo? Incêndio

e demolição. Cortar seu corpo em pedaços e servir

ao cachorro. Entregar peça por peça aos parentes e

amigos — distribuir os livros, os vestidos. Vender tudo.

Derrubar a casa. Instalar-se lá e tentar começar uma

nova vida, recomeçar a vida, retomar a vida da mãe,

adotar sua identidade, seus vestidos ou seu cenário,

construir um personagem. Ele não era capaz.



Ele era um incapaz. Mas sua mãe havia sido bem

específica. Instruções para o funeral. Que música

tocar. Que passagem ler. O que fazer com o corpo. O

que fazer com a casa. Para quem distribuir os móveis,

os livros; por que se preocupar? Depois de morta,

para quê? Para que os filhos não se preocupassem.

Independência e morte. Independente mesmo após.

Tudo sob controle. Ela fizera suas próprias escolhas,

não havia nada que ele pudesse fazer.



“André...” O advogado o recebeu no portão com

um aperto no ombro e um sorriso paternal. Um sorriso

paternalista. Um sorriso cansado. Talvez qualquer

homem que pudesse ser seu pai já estivesse cansado

naquele ponto. Qualquer homem que pudesse ter sido

seu pai já estaria numa idade avançada, velho, cansado,

desiludido, decepcionado. Bastardo. Também

havia o abatimento pela perda da amiga, e por pensar

que ele estava a caminho. O advogado já respirava

naquela realidade em que amigos começam a morrer

por todos os lados.



Seguiram até a casa. “Você veio caminhando?”, o

advogado o percebeu semiofegante, suor escorrendo

da testa. André assentiu, sorrindo. Sorriso triste. Mais

do que demonstrar ao velho que ainda era jovem o

suficiente para subir dois quilômetros a pé por uma

estrada de terra, demonstrava que isso o esgotava.

O advogado devia olhar para seus olhos e ver como

aquele menino, que conhecera ainda nas fraldas, já

estava murcho, exaurido, ressaltava-lhe ainda mais a

própria velhice. O advogado poderia ser o próximo da

fila, mas André não tardaria a acompanhá-lo.



Entraram na casa e ele viu a mãe por todos os lados.

Os restos da mãe. Os livros. O pêndulo do relógio

batendo. Era como uma prova viva de que ela existia.

Não mais viva, insistia por todos os lados. A mãe

materializada em muito mais do que uma carcaça.

Dizendo muito mais do que um epitáfio. Toda uma

vida, em cada centímetro daquela casa. “Deixa só eu

lavar o rosto.” André se dirigiu ao banheiro.



Uma viagem de sessenta minutos, de ônibus. Daí

descia na estrada, quilômetro 59, e subia a pé por

dois quilômetros de terra. Mochila nas costas. Tênis

gastos nos pés. Camiseta do Suede. Indo para a casa

da mãe. A mãe se escondia. Dificultava as coisas

para quem não tinha carro, como o próprio filho.



Um refúgio, para escrever, já na terceira idade, na

última curva, longe da cidade. André compreendia

e apreciava aquele surto bucólico. Mas, para ele, era

apenas um surto. Nunca conseguira passar mais de

uma noite naquela casa, subindo pelas paredes. O

tédio o consumia, o ar puro o intoxicava. Precisava

gastar energia, sedando-se com as cachaças da mãe,

as histórias da mãe. Precisava sair dali.


Por isso, a subida a pé fazia sentido. Era um processo.

Mais do que um ritual, deixando a cidade para trás,

a estrada para trás, o ônibus e a civilização,

intoxicando-se com os gases rodoviários, André ia se

amaciando, queimando combustível, preparando-se

para se apresentar como o filho dócil, faminto por

comida caseira. Preparando-se para se apresentar como

filho, corado, saudável e em forma. A quem queria

enganar? Chegou à casa e ao advogado como um

ex-fumante de meia-idade, cansado, exaurido, que

não sabia dirigir e mal conseguia respirar. Tatuagens

desbotadas. Camiseta puída. Suado, desgrenhado e

fedido, foi ao banheiro. Ao menos lavar o rosto.



Sobre a pia, encontrou os cremes da mãe, óleos,

hidratantes, antirrugas. Não fizeram muita diferença

num corpo cremado, a não ser que a pele hidratada

tenha levado mais tempo para queimar. Restos de

vaidade virando fumaça. André levantou o olhar para

o espelho e se viu melhor do que esperava — ainda

um pouco menino. Poderia ser por se olhar no espelho da

mãe, pela lembrança de que, na casa dela, ele seria

sempre o caçula. Provavelmente era mais pelo efeito

das bochechas coradas pelo exercício, a má iluminação

do banheiro, a boa iluminação do banheiro,

a iluminação indireta, vinda da janela, filtrada pelo

boxe, sombreando-lhe olheiras e as crescentes rugas de

expressão. Seu cabelo também estava num bom dia.

Untado pelo suor. A franja longa, escura. Era apenas

obra do acaso. O acaso às vezes o favorecia.



Voltou à sala e encontrou o advogado conversando

com a empregada. “Quer um café?”, ofereceu-lhe.

André assentiu novamente. O advogado o recebia

como visita em sua própria casa — não, na casa da

mãe. A casa não era dele, não era do advogado. A

casa não era de ninguém. Era a casa de uma mulher

morta. André sentou-se no sofá em frente à lareira

apagada, o advogado na poltrona ao lado. Passou-lhe

os papéis. “Esses são os que você precisa assinar

agora. E esses eu vou deixar também para a sua irmã;

quando ela vem?”




“Amanhã de manhã.” André passou os olhos por

cima dos papéis e se concentrou em fazer a assinatura

correta. Como a morte era burocrática. Um cadáver

que se arrastava em tantos detalhes, toda uma vida,

um legado, uma casa. O coração parava de bater, mas

as unhas continuavam crescendo, o cabelo crescendo,

os dentes amarelando, a pele se ressecando à espera de

Lancôme. Sua mãe podia ter acabado com a vida, mas

para dá-la por encerrada ele ainda teria muito a assinar,

contas a fechar, flores a comprar, arregaçar as mangas

e cavar ele mesmo uma sepultura. Depois cobri-la pá

a pá, bater a terra, fazer uma missa e rezar para que a

mãe não desse nem mais um suspiro. Fogo-fátuo. Um

gás que escapava.



André levantou os olhos e encontrou os do advogado,

que o examinava. Diabos, esse moleque não é

capaz nem de assinar os documentos da mãe morta,

pensou que o advogado pensava. A mãe cuidara de

tudo. A mãe cuidara de se matar para que ele mesmo e

sua irmã não tivessem de cuidar dela mais tarde. Fora

cremada para que não houvesse nem sepultura a ser

visitada. Nada de missa, nenhuma flor a murchar. Ele

não era capaz nem mesmo de assinar os atestados de

óbito. “Você tem firma em algum outro cartório? Os

dois que você me indicou não estão reconhecendo”,

dissera o advogado há alguns dias pelo telefone. Ele

tentou se convencer de que aquilo era perfeitamente

natural, ou de que o advogado acharia perfeitamente

natural; acabara de perder a mãe, normal

que o corpo tremesse, a mão vacilasse, assinatura

irreconhecível. Já ele mesmo não podia se enganar.



Há um bom tempo que isso acontecia. Ele tentando

assinar como ele mesmo; tentando provar por escrito

ser alguém que ele não era mais. “É melhor você ir lá,

ao cartório, fazer uma nova assinatura”, lhe recomendavam.

Porém não havia assinatura nova. André não

se reinventara. Seria incapaz de assinar duas vezes da

mesma forma, de uma nova forma. De qualquer forma,

o jeito era tentar imitar o melhor possível a antiga

grafia; era difícil, mas às vezes ele conseguia. Talvez

numa assinatura mais despreocupada. Talvez quando

o tabelião estivesse distraído... Diabos, será que não

podia simplesmente manchar o dedão e deixar sua

impressão digital? Cogitava perguntar.



André repassou os papéis ao advogado, não totalmente

seguro de que acertara sua assinatura. “Estamos

quase terminando aqui, André”, disse o advogado,

como quem lhe pedia um último esforço. Ele

se esforçava. E gostaria de acreditar que o advogado

acreditava que o esforço era apenas enterrar a mãe,

vencer sua morte, superar o luto; André sabia que o

advogado sabia além. O esforço era viver. E viver com

a morte da mãe era algo-demais-além-do-demasiado.

Estavam quase terminando, e depois? Estavam quase

terminando o quê? Talvez estivessem terminando os

dois. Vamos lá, eu te ajudo com essas últimas pás de

terra, depois é com você. Você não é mais um menino,

e eu não tenho mais nada com isso. Minha amizade

era com a sua mãe; é hora de você se virar sozinho.

Pelo amor de Deus, acerte essa assinatura e damos por

encerrado! Era isso o que o advogado dizia?



Ele abusara, sabia bem. Abusara dos serviços do

advogado, da amizade daquele homem com a mãe,

buscara seu socorro mais de uma vez, tarde da noite.

Buscara socorro algumas vezes de manhã também,

lembrava-se. Amizade é uma forma de se permitir

abusos, afinal. “Queria agradecer novamente por tudo

o que fez pela minha mãe... por nós”, André comentou.

Precisava deixar clara sua gratidão ao velho. O advogado

fez sinal com a mão como quem diz “deixe disso”,

e André sabia que não era um sinônimo de “não foi

nada”, e sim uma maneira de acabar logo com aquilo.

“Vamos acabar logo com isso. Daí não precisarei nunca

mais te socorrer. Agora você está nessa sozinho.”



André ressentia a gratidão que sentia. Acostumara-se

a tomar tudo aquilo como natural. Era fruto de seu

talento, sua voz, seu rostinho bonito. Porém talento,

voz, rosto, tudo murcha com o tempo, e precisava

agradecer pelo que ainda tinha. O advogado à sua

frente. O trabalho que era poupado diante de todo

trabalho que o outro já tivera — que trabalho ele teve?

Será que ninguém percebia que trabalho era respirar

todos os dias? Arrastar-se a cada manhã para fora da

cama, na hora do almoço, de tarde, antes que escurecesse?

O trabalho que era conseguir chegar ao final

da noite e apenas dormir? Ninguém tinha nada com

isso. As pessoas conseguiam. As pessoas se levantavam

de madrugada, pegavam ônibus, pegavam outro ônibus,

trabalhavam, faziam fila com bandeja tentando

encaixar no mesmo prato salada de batata, coxinha

de frango, macarrão ao alho e óleo, bife de contrafilé,

voltavam ao trabalho, pegavam um ônibus de volta

para casa, pegavam outro, tropeçavam, levavam um

tiro, eram atropeladas e continuavam se arrastando. Ele

era um adulto, e deveria ser fácil. Se tinha insônia, se

tinha pesadelos, se os lençóis estavam imundos ou não

tinha onde dormir, era problema apenas dele. A mãe

não estava mais lá e o advogado já estava indo embora.



E não era só um advogado, diabos. Eram médicos,dentista,

uma empregada. Era um marceneiro, uma

loja de móveis, uma fiadora. Quantos contatos, amigos,

favores perdia com a morte da mãe? Quantos

restavam a seu lado? Um mundo todo que morria.

Não podia empurrá-lo mais um pouco, ressuscitá-lo,

invocá-lo dos mortos com as palavras certas, a assinatura

errada?



“Está tudo certo com a venda da casa?”, o advogado

perguntava como quem lia seus pensamentos.

Quem sabe um último favor, ajudar a vendê-la. Não

era necessário. André assentia. “Acho que sim, minha

irmã é quem está cuidando disso.” A irmã. A irmã não

estava do seu lado. A irmã tinha sua própria família,

marido, filhos. Ele estava sozinho. Há muito que estava

sozinho. E só agora, com a morte da mãe, percebia

como nunca se solidificara em adulto.



O advogado tocou novamente seu ombro, apertando-

o. Um pouquinho mais de compaixão. Paciência.

Vamos lá, André, você consegue.


André sorriu. Claro que ele conseguia. Ontem à

noite mesmo se sentia confiante, num gole de vodca.

Droga, ele era um astro. Tinha uma história. E a

história não acabara. Ele perdera a mãe, como todos

perdem. E o que conquistara não era pouca coisa.

Agora era se reerguer, vender a casa, fazer bom uso

do dinheiro, investir na carreira, apostar no talento.

O talento ainda estava lá — desengasgue e cante! E o

nome ele ainda tinha. Fora só uma sucessão de erros,

azares, vícios, a morte da mãe. O resto estava todo no

lugar. O lugar era feito de restos.



A empregada veio com a bandeja do café. O advogado

lhe agradeceu. Tudo muito civilizado. Essa era

outra relação que morria. Relação servil, patrão-empregada.

André não conseguiria mantê-la. A empregada

também já estava em idade avançada. “A

ascensão da classe C.” Aquela mulher dentro de casa,

limpando suas pegadas de barro, era algo que ele não

encontraria mais.



“Meu caseiro deve estar chegando para levar o

sofá”, prosseguiu o advogado, “e as camas do quarto

de hóspede. Não tem problema para você, não é?”

André balançou a cabeça. Não teria onde colocar

todos aqueles móveis. E a irmã já tinha uma casa toda

mobiliada. Era coisa demais para uma só mulher. Era

coisa demais para ninguém. Era uma vida inteira, coisa

demais para uma mulher morta. A mãe quis que seus

bens fossem distribuídos entre os amigos, e o advogado

mais do que merecia. O que não fosse levado provavelmente

seria entregue junto com a casa.



Num gole, André já havia bebido e servia-se de

mais café. E mais um. O advogado levantava-se e lhe

estendia a mão. André teve de se levantar antes de

acreditar que o café realmente fizera efeito. Apenas

cafeína, que efeito ele esperava? Acompanhou o advogado

até a porta. Agora era ele o dono da casa. Ao

menos até o dia seguinte, era ele quem mandava. Rei

por um dia de uma única casa — era bem mais do que

havia sido ultimamente. E seguindo atrás do advogado,

não podia deixar de se fortalecer diante da velhice do

homem, da gordura do homem, sua postura curvada

e sua baixa estatura. É, apesar dos excessos, de uma

vida de vícios, André ainda era jovem, ainda homem,

ainda podia. Seria Rei! O peso dos anos é mais forte

do que tudo, e André ainda tinha certa leveza a seu

favor, pelo menos diante daquele velho. André não

era mais menino, mas ainda era um homem, ainda

conseguiria, ainda tinha sua chance.



E na capa de O Globo de hoje... Entrevista na íntegra no site, aqui: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/santiago-nazarian-muita-gente-me-considera-um-babaca-12693375

ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...