Era a casa da mãe, não a sua casa. Ele nunca morara
lá. Não brincara em suas escadas, não crescera entre
aquelas paredes. Não esfolara o joelho em seu chão
nem contemplara o teto em noites de tempestades,
em madrugadas insones. Ainda assim, não deixava de
ser estranhamente familiar. Estranho, mas familiar.
A mesa em que estudara, na sala; uma quina em que
tantas vezes topara; móveis da sua infância, talheres
de vidas passadas, estantes, lombadas, lembranças dispersas
reorganizadas num novo espaço, sob um novo
teto. Era o que a mãe realmente fora, ou aquilo que
se tornara, longe dos filhos, em sua verdadeira casa.
E era tudo o que sobrara.
O que fazer com tudo aquilo? O que fazer com o
cadáver de uma casa, uma vida, a mãe morta? Enterro
ou cremação? Criogenia ou canibalismo? Incêndio
e demolição. Cortar seu corpo em pedaços e servir
ao cachorro. Entregar peça por peça aos parentes e
amigos — distribuir os livros, os vestidos. Vender tudo.
Derrubar a casa. Instalar-se lá e tentar começar uma
nova vida, recomeçar a vida, retomar a vida da mãe,
adotar sua identidade, seus vestidos ou seu cenário,
construir um personagem. Ele não era capaz.
Ele era um incapaz. Mas sua mãe havia sido bem
específica. Instruções para o funeral. Que música
tocar. Que passagem ler. O que fazer com o corpo. O
que fazer com a casa. Para quem distribuir os móveis,
os livros; por que se preocupar? Depois de morta,
para quê? Para que os filhos não se preocupassem.
Independência e morte. Independente mesmo após.
Tudo sob controle. Ela fizera suas próprias escolhas,
não havia nada que ele pudesse fazer.
“André...” O advogado o recebeu no portão com
um aperto no ombro e um sorriso paternal. Um sorriso
paternalista. Um sorriso cansado. Talvez qualquer
homem que pudesse ser seu pai já estivesse cansado
naquele ponto. Qualquer homem que pudesse ter sido
seu pai já estaria numa idade avançada, velho, cansado,
desiludido, decepcionado. Bastardo. Também
havia o abatimento pela perda da amiga, e por pensar
que ele estava a caminho. O advogado já respirava
naquela realidade em que amigos começam a morrer
por todos os lados.
Seguiram até a casa. “Você veio caminhando?”, o
advogado o percebeu semiofegante, suor escorrendo
da testa. André assentiu, sorrindo. Sorriso triste. Mais
do que demonstrar ao velho que ainda era jovem o
suficiente para subir dois quilômetros a pé por uma
estrada de terra, demonstrava que isso o esgotava.
O advogado devia olhar para seus olhos e ver como
aquele menino, que conhecera ainda nas fraldas, já
estava murcho, exaurido, ressaltava-lhe ainda mais a
própria velhice. O advogado poderia ser o próximo da
fila, mas André não tardaria a acompanhá-lo.
Entraram na casa e ele viu a mãe por todos os lados.
Os restos da mãe. Os livros. O pêndulo do relógio
batendo. Era como uma prova viva de que ela existia.
Não mais viva, insistia por todos os lados. A mãe
materializada em muito mais do que uma carcaça.
Dizendo muito mais do que um epitáfio. Toda uma
vida, em cada centímetro daquela casa. “Deixa só eu
lavar o rosto.” André se dirigiu ao banheiro.
Uma viagem de sessenta minutos, de ônibus. Daí
descia na estrada, quilômetro 59, e subia a pé por
dois quilômetros de terra. Mochila nas costas. Tênis
gastos nos pés. Camiseta do Suede. Indo para a casa
da mãe. A mãe se escondia. Dificultava as coisas
para quem não tinha carro, como o próprio filho.
Um refúgio, para escrever, já na terceira idade, na
última curva, longe da cidade. André compreendia
e apreciava aquele surto bucólico. Mas, para ele, era
apenas um surto. Nunca conseguira passar mais de
uma noite naquela casa, subindo pelas paredes. O
tédio o consumia, o ar puro o intoxicava. Precisava
gastar energia, sedando-se com as cachaças da mãe,
as histórias da mãe. Precisava sair dali.
Por isso, a subida a pé fazia sentido. Era um processo.
Mais do que um ritual, deixando a cidade para trás,
a estrada para trás, o ônibus e a civilização,
intoxicando-se com os gases rodoviários, André ia se
amaciando, queimando combustível, preparando-se
para se apresentar como o filho dócil, faminto por
comida caseira. Preparando-se para se apresentar como
filho, corado, saudável e em forma. A quem queria
enganar? Chegou à casa e ao advogado como um
ex-fumante de meia-idade, cansado, exaurido, que
não sabia dirigir e mal conseguia respirar. Tatuagens
desbotadas. Camiseta puída. Suado, desgrenhado e
fedido, foi ao banheiro. Ao menos lavar o rosto.
Sobre a pia, encontrou os cremes da mãe, óleos,
hidratantes, antirrugas. Não fizeram muita diferença
num corpo cremado, a não ser que a pele hidratada
tenha levado mais tempo para queimar. Restos de
vaidade virando fumaça. André levantou o olhar para
o espelho e se viu melhor do que esperava — ainda
um pouco menino. Poderia ser por se olhar no espelho da
mãe, pela lembrança de que, na casa dela, ele seria
sempre o caçula. Provavelmente era mais pelo efeito
das bochechas coradas pelo exercício, a má iluminação
do banheiro, a boa iluminação do banheiro,
a iluminação indireta, vinda da janela, filtrada pelo
boxe, sombreando-lhe olheiras e as crescentes rugas de
expressão. Seu cabelo também estava num bom dia.
Untado pelo suor. A franja longa, escura. Era apenas
obra do acaso. O acaso às vezes o favorecia.
Voltou à sala e encontrou o advogado conversando
com a empregada. “Quer um café?”, ofereceu-lhe.
André assentiu novamente. O advogado o recebia
como visita em sua própria casa — não, na casa da
mãe. A casa não era dele, não era do advogado. A
casa não era de ninguém. Era a casa de uma mulher
morta. André sentou-se no sofá em frente à lareira
apagada, o advogado na poltrona ao lado. Passou-lhe
os papéis. “Esses são os que você precisa assinar
agora. E esses eu vou deixar também para a sua irmã;
quando ela vem?”
“Amanhã de manhã.” André passou os olhos por
cima dos papéis e se concentrou em fazer a assinatura
correta. Como a morte era burocrática. Um cadáver
que se arrastava em tantos detalhes, toda uma vida,
um legado, uma casa. O coração parava de bater, mas
as unhas continuavam crescendo, o cabelo crescendo,
os dentes amarelando, a pele se ressecando à espera de
Lancôme. Sua mãe podia ter acabado com a vida, mas
para dá-la por encerrada ele ainda teria muito a assinar,
contas a fechar, flores a comprar, arregaçar as mangas
e cavar ele mesmo uma sepultura. Depois cobri-la pá
a pá, bater a terra, fazer uma missa e rezar para que a
mãe não desse nem mais um suspiro. Fogo-fátuo. Um
gás que escapava.
André levantou os olhos e encontrou os do advogado,
que o examinava. Diabos, esse moleque não é
capaz nem de assinar os documentos da mãe morta,
pensou que o advogado pensava. A mãe cuidara de
tudo. A mãe cuidara de se matar para que ele mesmo e
sua irmã não tivessem de cuidar dela mais tarde. Fora
cremada para que não houvesse nem sepultura a ser
visitada. Nada de missa, nenhuma flor a murchar. Ele
não era capaz nem mesmo de assinar os atestados de
óbito. “Você tem firma em algum outro cartório? Os
dois que você me indicou não estão reconhecendo”,
dissera o advogado há alguns dias pelo telefone. Ele
tentou se convencer de que aquilo era perfeitamente
natural, ou de que o advogado acharia perfeitamente
natural; acabara de perder a mãe, normal
que o corpo tremesse, a mão vacilasse, assinatura
irreconhecível. Já ele mesmo não podia se enganar.
Há um bom tempo que isso acontecia. Ele tentando
assinar como ele mesmo; tentando provar por escrito
ser alguém que ele não era mais. “É melhor você ir lá,
ao cartório, fazer uma nova assinatura”, lhe recomendavam.
Porém não havia assinatura nova. André não
se reinventara. Seria incapaz de assinar duas vezes da
mesma forma, de uma nova forma. De qualquer forma,
o jeito era tentar imitar o melhor possível a antiga
grafia; era difícil, mas às vezes ele conseguia. Talvez
numa assinatura mais despreocupada. Talvez quando
o tabelião estivesse distraído... Diabos, será que não
podia simplesmente manchar o dedão e deixar sua
impressão digital? Cogitava perguntar.
André repassou os papéis ao advogado, não totalmente
seguro de que acertara sua assinatura. “Estamos
quase terminando aqui, André”, disse o advogado,
como quem lhe pedia um último esforço. Ele
se esforçava. E gostaria de acreditar que o advogado
acreditava que o esforço era apenas enterrar a mãe,
vencer sua morte, superar o luto; André sabia que o
advogado sabia além. O esforço era viver. E viver com
a morte da mãe era algo-demais-além-do-demasiado.
Estavam quase terminando, e depois? Estavam quase
terminando o quê? Talvez estivessem terminando os
dois. Vamos lá, eu te ajudo com essas últimas pás de
terra, depois é com você. Você não é mais um menino,
e eu não tenho mais nada com isso. Minha amizade
era com a sua mãe; é hora de você se virar sozinho.
Pelo amor de Deus, acerte essa assinatura e damos por
encerrado! Era isso o que o advogado dizia?
Ele abusara, sabia bem. Abusara dos serviços do
advogado, da amizade daquele homem com a mãe,
buscara seu socorro mais de uma vez, tarde da noite.
Buscara socorro algumas vezes de manhã também,
lembrava-se. Amizade é uma forma de se permitir
abusos, afinal. “Queria agradecer novamente por tudo
o que fez pela minha mãe... por nós”, André comentou.
Precisava deixar clara sua gratidão ao velho. O advogado
fez sinal com a mão como quem diz “deixe disso”,
e André sabia que não era um sinônimo de “não foi
nada”, e sim uma maneira de acabar logo com aquilo.
“Vamos acabar logo com isso. Daí não precisarei nunca
mais te socorrer. Agora você está nessa sozinho.”
André ressentia a gratidão que sentia. Acostumara-se
a tomar tudo aquilo como natural. Era fruto de seu
talento, sua voz, seu rostinho bonito. Porém talento,
voz, rosto, tudo murcha com o tempo, e precisava
agradecer pelo que ainda tinha. O advogado à sua
frente. O trabalho que era poupado diante de todo
trabalho que o outro já tivera — que trabalho ele teve?
Será que ninguém percebia que trabalho era respirar
todos os dias? Arrastar-se a cada manhã para fora da
cama, na hora do almoço, de tarde, antes que escurecesse?
O trabalho que era conseguir chegar ao final
da noite e apenas dormir? Ninguém tinha nada com
isso. As pessoas conseguiam. As pessoas se levantavam
de madrugada, pegavam ônibus, pegavam outro ônibus,
trabalhavam, faziam fila com bandeja tentando
encaixar no mesmo prato salada de batata, coxinha
de frango, macarrão ao alho e óleo, bife de contrafilé,
voltavam ao trabalho, pegavam um ônibus de volta
para casa, pegavam outro, tropeçavam, levavam um
tiro, eram atropeladas e continuavam se arrastando. Ele
era um adulto, e deveria ser fácil. Se tinha insônia, se
tinha pesadelos, se os lençóis estavam imundos ou não
tinha onde dormir, era problema apenas dele. A mãe
não estava mais lá e o advogado já estava indo embora.
E não era só um advogado, diabos. Eram médicos,dentista,
uma empregada. Era um marceneiro, uma
loja de móveis, uma fiadora. Quantos contatos, amigos,
favores perdia com a morte da mãe? Quantos
restavam a seu lado? Um mundo todo que morria.
Não podia empurrá-lo mais um pouco, ressuscitá-lo,
invocá-lo dos mortos com as palavras certas, a assinatura
errada?
“Está tudo certo com a venda da casa?”, o advogado
perguntava como quem lia seus pensamentos.
Quem sabe um último favor, ajudar a vendê-la. Não
era necessário. André assentia. “Acho que sim, minha
irmã é quem está cuidando disso.” A irmã. A irmã não
estava do seu lado. A irmã tinha sua própria família,
marido, filhos. Ele estava sozinho. Há muito que estava
sozinho. E só agora, com a morte da mãe, percebia
como nunca se solidificara em adulto.
O advogado tocou novamente seu ombro, apertando-
o. Um pouquinho mais de compaixão. Paciência.
Vamos lá, André, você consegue.
André sorriu. Claro que ele conseguia. Ontem à
noite mesmo se sentia confiante, num gole de vodca.
Droga, ele era um astro. Tinha uma história. E a
história não acabara. Ele perdera a mãe, como todos
perdem. E o que conquistara não era pouca coisa.
Agora era se reerguer, vender a casa, fazer bom uso
do dinheiro, investir na carreira, apostar no talento.
O talento ainda estava lá — desengasgue e cante! E o
nome ele ainda tinha. Fora só uma sucessão de erros,
azares, vícios, a morte da mãe. O resto estava todo no
lugar. O lugar era feito de restos.
A empregada veio com a bandeja do café. O advogado
lhe agradeceu. Tudo muito civilizado. Essa era
outra relação que morria. Relação servil, patrão-empregada.
André não conseguiria mantê-la. A empregada
também já estava em idade avançada. “A
ascensão da classe C.” Aquela mulher dentro de casa,
limpando suas pegadas de barro, era algo que ele não
encontraria mais.
“Meu caseiro deve estar chegando para levar o
sofá”, prosseguiu o advogado, “e as camas do quarto
de hóspede. Não tem problema para você, não é?”
André balançou a cabeça. Não teria onde colocar
todos aqueles móveis. E a irmã já tinha uma casa toda
mobiliada. Era coisa demais para uma só mulher. Era
coisa demais para ninguém. Era uma vida inteira, coisa
demais para uma mulher morta. A mãe quis que seus
bens fossem distribuídos entre os amigos, e o advogado
mais do que merecia. O que não fosse levado provavelmente
seria entregue junto com a casa.
Num gole, André já havia bebido e servia-se de
mais café. E mais um. O advogado levantava-se e lhe
estendia a mão. André teve de se levantar antes de
acreditar que o café realmente fizera efeito. Apenas
cafeína, que efeito ele esperava? Acompanhou o advogado
até a porta. Agora era ele o dono da casa. Ao
menos até o dia seguinte, era ele quem mandava. Rei
por um dia de uma única casa — era bem mais do que
havia sido ultimamente. E seguindo atrás do advogado,
não podia deixar de se fortalecer diante da velhice do
homem, da gordura do homem, sua postura curvada
e sua baixa estatura. É, apesar dos excessos, de uma
vida de vícios, André ainda era jovem, ainda homem,
ainda podia. Seria Rei! O peso dos anos é mais forte
do que tudo, e André ainda tinha certa leveza a seu
favor, pelo menos diante daquele velho. André não
era mais menino, mas ainda era um homem, ainda
conseguiria, ainda tinha sua chance.
E na capa de O Globo de hoje... Entrevista na íntegra no site, aqui: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/santiago-nazarian-muita-gente-me-considera-um-babaca-12693375