29/08/2014

DE QUANDO NOLL CRUZOU UM RIO DE PIRANHAS


Almoço com João Gilberto Noll, no começo do ano. 


O querido escritor Sergio Tavares me convidou para estrear uma série no site Homo Literatus, com autores falando de seus contos favoritos.

Meu imortal pessoal é João Gilberto Noll, e o conto "O Meu Amigo", do livro de estreia dele (O Cego e a Dançarina de 1980, vencedor do Jabuti) é daqueles que nem li tão novo (talvez eu até já tivesse sido publicado), mas que bateu uma identificação instantânea, uma admiração para a vida toda.

Sobre o conto, falo nesse projeto aqui. Mas depois fiquei pensando em como Noll revisitou o cenário na sua (ótima) novela juvenil Sou Eu (Scipione, 2009), e como eu mesmo acabei fazendo a minha versão...

Trecho do conto do Noll:

Uma tarde choveu muito forte e mesmo assim nós dois não arredamos da margem do lago, encharcados e lambuzados de barro, de folhas, de plantas, de um tédio pastoso. E ali ficamos até as sete horas da tarde. Final do verão e das férias, as bicicletas deitadas sobre a grama. Eu tinha horror dele, desejava sua morte repentina, sem lhe dar chance de recuperar um único suspiro. Mas na época não sabia que desejava isso, eu achava apenas que não queria mais vê-lo nunca mais. Ele me desprezava. Eu nunca entendi por quê. Eu gostava de entrar no lago, fingir que nadava, mas ele não encostava na água. Ele ficava na margem, e quando eu ficava de costas tenho certeza de que ele me olhava, a minha nuca se arrepiando, o sol indo embora. 

E da novela dele:

O menino da cidade saiu do rio, sentou na margem e tentou se concentrar mais uma vez no seu próprio eixo. Mas no momento era difícil voltar para dentro de si mesmo. Viu que sua vida de verão seria mesmo aquela alegria desvairada com o garoto campesino. Aferrado aos próprios pensamentos, aos pequenos tormentos diários da cidade, ele deixaria passar a festa daquele dia ensolarado, uma festa a que ele fora convidado sem saber quem era o anfitrião. 



A novela do Noll, não por acaso, foi lindamente ilustrada pelo Alexandre Matos, meu querido amigo e colaborador que ilustrou, entre outros, O Prédio, o Tédio e o Menino Cego. Ele eu descobri primeiro!


Meu conto "Piranhitas" foi escrito entre os dois - bem depois de eu ter lido o conto original, bem antes de Noll publicar a sua novela. Foi publicado originalmente em 2007, em espanhol (onde pirañita é sínônimo de "trombadinha" ou "pivete") na Colômbia (antologia Bogotá 39). No Brasil, saiu em 2011, no meu único livro de contos, Pornofantasma, que ainda está em catálogo. É um conto bem curto para os padrões do livro - mas segue o tema de "sexo e morte", e meu querido amigo Marcelino Freire insistiu que tinha de estar no livro, então dediquei a ele.

Aproveitando assim como homenagem também ao Noll, coloco aqui meu conto na íntegra. (Tenho certeza de que a Record não vai se importar - é meu conto mais curto de um livro de 340 páginas - fica como um aperitivo; acho que já havia publicado aqui, de qualquer forma).

"Piranhitas"

Dois primos paravam à margem do rio. Catorze e treze anos.
Deviam ter esses nomes de meninos — Fábio, Gustavo — para
se chamarem de Binho e Guto. Garotos. Diminuíam um ao
outro. Mas esticavam braços e pernas para dentro d’água. Para
ver se estava fria. Se estava quente.

Não entravam, indecisos. Brincavam, precavidos, agitando
a água, sentindo a temperatura, fingindo se preparar para mergulhar.
Mergulharam tantas vezes, tantas outras, tantas antes,
sem nem mesmo colocar um dedo, sem nem mesmo se importar
com os graus. O calor já estava neles. E sempre haveria
um bom motivo para afundar, refrescar, fugir do arrepio dos
mosquitos.

Agora não, aos catorze, treze... Aos catorze e treze tinham
consciência do perigo. Talvez fossem os braços e pernas, que se
esticavam para dentro d’água. Talvez fosse o ensino, a escola,
Ciências, talvez fosse a tênia solitária. E o rio em que mergulharam
tantas vezes — tantas outras, tantas mais — ganhava
novos riscos, doenças, novos tipos de correntezas.

O mais novo sabia do que tinha medo: piranhas. Dentinhos
afiados trabalhando em conjunto, consumindo tudo o
que ele insistisse em mergulhar. Ele era mais novo, mas tinha
mais carne. Era mais branco, serviria de isca. Como boi de
piranha, seria devorado por elas, enquanto seu primo... seu primo
cruzaria a salvo. Bastava um ferimento aberto. Bastava um
sangramento mínimo. Um corte quase imperceptível, elas perceberiam.
Devorariam o garoto no rio em que já fora menino.

O mais velho tinha medo de outra coisa: doenças. Nadara
entre piranhas — e as pescara — na ponta de sua vara — sabia
que elas não lhe fariam mal. Ele era magro. Era moreno. Era esguio
e alongado, elas se assustariam com seus braços e pernadas.
O perigo permaneceria imperceptível. Caramujos, platelmintos,
sanguessugas. Animais minúsculos que se alimentariam da
sua puberdade, avançariam antes de ele completar quinze. Comeriam
suas entranhas, não deixariam nada para as piranhas.

Os dois ponderavam...

Os dois ponderavam, lado a lado, olhando para a água e tentando
mergulhar os olhos lá no fundo, revolvendo o solo e descobrindo
o que havia de errado, se havia algo escondido, por que
não mergulhar naquele rio em que nadavam desde pequeninos?
Aos poucos, o calor foi suavizando, o sol se pondo, e eles sabiam
que teria de ser logo ou nunca. Logo ou nunca, o rio não
ficaria para sempre lá. O rio correria, secaria, e a vida os levaria
para longe daquela infância que foi transformada em covardia.
Quem funcionaria como isca? Quem serviria de cobaia?

“Você primeiro”, “não, você”, travestiam em gentileza uma coragem
que não tinham. Bastava só mergulhar os pés, bastava ver se
o primeiro sobreviveria. Quando um mergulhasse, e não sobrevivesse,
o outro apenas suspiraria “Ainda bem que não fui eu”.

“Então por que não entramos juntos?”, sugeriu o maior.
Não era o caso, não queriam fazer um pacto de suicídio. Ficaram
em silêncio, concordando. Não queriam mais morrer
juntos.

A água já estava vermelha pelo fim do dia. Logo seria noite
e impossível. Voltariam para casa e depois para a cidade. Mais
nenhuma oportunidade. O rio, a natureza chamando, e apenas
os pés molhados. Metidos dentro de tênis, sentiriam os dedos
enrugando. O tempo havia mesmo passado, as oportunidades,
e eles nem aproveitaram.

Voltariam a ser crianças, num impulso, num mergulho,
antes que fosse tarde. Fábio, Gustavo, Binho e Guto, se derramaram.
Entraram na água até a cintura, deixando de pensar.

Tomaram coragem, foram de ímpeto, estavam na água para
se molhar. O calor ainda era mais forte que os platelmintos, a
água era mais limpa que os mosquitos. Cansaram de abanar os
insetos, limpar o suor, olhar para o horizonte e imaginar o que
estava lá. A correnteza não poderia levá-los. Já eram grandes
demais. Braços, pernas, uns mergulhados, outros ao alcance da
margem. Só um pouquinho, só mais um pouco, só um pouquinho
não fará mal.

Mas a impaciência não é só virtude dos meninos. A ansiedade
também faz chorar crocodilos, jacarés, eu. Já estava no final
do meu dia e cansado de esperar. Que eles viessem até mim.
Que me fossem trazidos pela correnteza. Que nadassem para
meus braços, meu abraço, minha boca. Trabalho sozinho, mas
sou mais esperto que piranhitas. Tenho apetite para os dois,
para comer a carne e palitar os dentes. A doçura do mais novo
e a crocância do maior. Carne vermelha, frango de leite. Se os
meninos não vêm até nós, nós vamos até eles. Posso alcançá-los
à margem. Haverá um dia em que os répteis voltarão a dominar
a Terra.




E como as inspirações nunca estão isoladas, fotos da Sally Mann, como essa, também foram um empurrão para eu mergulhar. 


27/08/2014

DISCÍPULOS DA IGREJA DE SATÃ, UNI-VOS!


Poucos meses após o lançamento, BIOFOBIA segue sua carreira sem grandes explosões, mas crescendo aos poucos, pelas frestas, em fotossíntese.

Inacreditavelmente, talvez tenha sido meu livro mais resenhado (mesmo que eu não tenha nada a reclamar da divulgação de Mastigando Humanos e Feriado de Mim Mesmo, quando foram lançados). Se o espaço para livros diminuiu absurdamente na mídia impressa nos últimos dez anos, proliferaram-se os blogs e vlogs de resenhas literárias. Parece agora que todo leitor é um resenhista. E pode se encontrar gente de toda parte e de todas as idades comentando sobre os livros que leu. Claro, a grande maioria dessas resenhas não é profissional, muita coisa mal escrita, muita visão superficial, mas também muita coisa bonitinha, visões mais afetivas, mais sinceras.

Esse leitor mais jovem, blogueiro, tem ficado meio perdido com o livro, talvez esperando o "thriller eletrizante" que o release falsamente apregoa (eu não tive nada com isso - sempre considerei um thriller psicológico, lento e latente), porém ainda tem trazido impressões bem interessantes. Nenhuma resenha realmente negativa.

Mais lindo tem sido a recepção pelo meio literário, que tem falado do livro com entusiasmo e compreendido bem a proposta. Só tive mesmo uma resenha negativa de um certo desafeto que não merece ter nome citado, mas Daniel Galera, Manuel da Costa Pinto, Simone Campos, Raphael Montes, Rafael Gallo, Marcelino Freire, Andrea del Fuego, Ismael Caneppele, Ronaldo Bressane, Michel Laub, Xico Sá, além de músicos como Marina Lima e Leoni, todos têm recomendado lindamente o livro por aí.

As vendas seguem devagar - não esperava mesmo que fosse um livro de massa, e nem foi promovido pela editora como tal -, agora estou investindo nos desdobramentos, conversando sobre uma possibilidade de filme e adaptando eu mesmo para o teatro. Estou preferindo não rever o texto - não teria sentido, até porque o teatro tem outra linguagem. Apenas com a história na cabeça, reconstruo a trama - que afinal já foi escrita originalmente pensando nas possibilidades cênicas. O prólogo da peça será o epílogo, por exemplo; começará com a última cena do livro. Essa reinvenção é o que torna esse novo trabalho mais motivador e mais... novo, para mim. Adoro teatro. Assisto bastante. E há tempos que queria/tentava escrever uma peça. Acho que vai render.

A BIOFOBIA tour seguirá mais intensa neste segundo semestre. Nos próximos meses tem Fliparanapiacaba, Fliaraxá, Feira do Livro de Porto Alegre, Florianópolis, Extrema, entre outros, além de duas viagens internacionais em outubro. Tenho atualizado no "Agenda" aqui do blog tudo o que já posso divulgar. Tem sido um bom ano de eventos e viagens - muito pela minha cara de pau de bater em portas, pedir, sugerir, convencer. É uma batalha constante - infelizmente só o currículo, a carreira, oito livros, dezenas de traduções, centenas de outros trabalhos não falam por si só. É preciso pertencer, aparecer, se encaixar...

Meus leitores podiam fazer mais por mim, hein? Meus leitores poderiam chegar ao poder. Meus leitores podiam me elevar com eles, me levar até eles. Sugiram, indiquem, convençam, vendam. Assim chegaremos lá. Só assim poderei continuar...

Fiquem aqui com a versão DOIS do trailer de BIOFOBIA, que pouquíssima gente viu, com uma micro-entrevista comigo no final. Divulguem.

13/08/2014

A TRISTEZA DO SAMURAI

Outra resenha minha publicada semana passada na Folha: 


Uma jovem advogada prospera na carreira ao conseguir condenar um inspetor acusado de tortura. Quarenta anos antes, outra mulher tenta fugir do marido contra o qual planejava um atentado. Seu filho mais novo sofre de estranhos distúrbios e apresenta, ainda novo, um comportamento violento. Seu filho mais velho ingressa no exército para fugir do pai, um político autoritário. Essas e outras histórias aparentemente desconexas vão se interligando lentamente nas 450 páginas de “A Tristeza do Samurai”. De fato, até metade do romance de Víctor del Árbol, o leitor pode se encontrar perdido sobre qual é exatamente a trama, quais são seus mistérios (e qual é o sentido do título).
“A Tristeza de Samurai” é um ambicioso misto de drama histórico, thriller político, de espionagem e policial. A combinação não deixa de gerar um pastiche tarantinesco, com centenas de momentos recosturados de clichês cinematográficos: um menino passeia com seu cachorro, que acaba encontrando um corpo; um psicopata deformado é mantido num porão como animal de estimação dos mafiosos; o policial perseguido por matadores acaba morto por sua própria esposa abusada. Entretanto, se Del Árbol recicla imagens já vistas, o faz com extrema competência. A arquitetura do romance é impressionante, com diversos núcleos se encaixando em quarenta anos de história. A trama segue do começo dos anos 1940 até começo dos 80, servindo também de panorama da ditadura franquista na Espanha.
Beneficiado por uma melhor edição original, o texto poderia ter se livrado de momentos desnecessariamente explicativos e de lugares comuns (“se sentia vazia como uma noite sem estrelas”, “usada como uma ovelha entregue aos lobos”, “hesitava como um passarinho que vê, um belo dia, lhe abrirem a porta da gaiola”). Os diálogos são invariavelmente eloquentes demais para quem os profere, e tudo é demasiado encaixado para ser feita uma leitura realista – mas pode ser aceito sem problemas num contexto de gênero. Longe de ser alta literatura, A Tristeza do Samurai cumpre os diversos desafios a que se propõe e está longe de ser uma obra medíocre. Como romance policial, ganhou o Prêmio Polar em 2012.

Avaliação: Bom 

11/08/2014

FORA DA FESTA



A presidente da CBL e eu, discutindo sobre o mercado, semana passada. 

Pós-Flip... (é, FLIP, ainda) pré-Bienal, voltam as discussões sobre os eventos literários. O Globo deste final de semana colocou divertidos depoimentos de Joca Terron, Andrea Del Fuego e André Sant’Anna sobre o tema. É um consenso que as feiras, festas, festivais e bienais literários se multiplicaram absurdamente na última década. E é comum os escritores discutirem sua validade para além dos cachês, o público ouvinte que não se configura como público leitor, a atual necessidade do escritor ser uma espécie de popstar.

Discuti um pouco sobre isso num debate na TV Cultura semana passada (vídeo acima) e tenho participado dessa discussão com frequência. Como eu disse, esse eventos mais vendem a figura do escritor – como um stand-up de elite – do que seus livros. Mas contesto essa ideia de que o escritor seja visto como popstar, até porque o Brasil não é um país de popstars.

“Exige-se a presença do escritor sim, mas com a pose de intelectual sério, o professor. Ele tem de fazer parte das panelinhas acadêmicas e editoriais, tem de aparentar Intelectualidade", comentei recentemente numa entrevista para o Luciano Trigo. O escritor convidado para os eventos literários é o intelectual desinibido, o cara sóbrio e sábio que reflete o pensamento de seu tempo, não necessariamente confronta, traz algo novo ou provocativo, e muito menos se assemelha a um popstar. 

Os belos depoimentos de Terron, Del Fuego e Sant’Anna no Globo expõem uma visão parcial. Provavelmente foram convidados pelo jornal por participarem muito desses eventos - e isso já comunica outra verdade: há muitos eventos, mas os convidados são sempre os mesmos.

Ao que parece, todos os autores têm um excesso de convites, maior do que dão conta, e isso se torna uma espécie de problema. Com certeza não é a regra. A regra são escritores ESMOLANDO por um convite de feira, de festival, o que deve contribuir de forma significativa para a baixa dos cachês. Claro, há autores de diversos calibres, e os iniciantes e amadores podem aceitar fazer de graça o que deveria ser pago. O escritor participar de graça de um evento para divulgar seu livro é como um músico tocar de graça para divulgar seu CD, é o que sempre digo. Assim, achei curioso a agente Valeria Martins apontar os cachês de eventos literários como “entre 3 e dez mil” (!), eu diria que é mais entre zero (mais comum) e cinco mil. O inferno é o limite negativo.

A questão é que, antes de tudo, a curadoria é preguiçosa, chama quem já fez, quem sempre faz, e é difícil furar o ciclo. O escritor é sempre um artista independente. Podem achar que estar numa editora grande garante uma equipe trabalhando por você. Besteira. Tirando raras exceções, a editora trabalha o lançamento do mês, e olhe lá, não trabalha a carreira do autor.  Vez ou outra eles podem sugerir seu nome num grande evento, mas depende das relações pessoais do autor conseguir convites, viagens, até matérias na imprensa.

O agenciamento literário tem se tornado mais comum no Brasil, mas as agentes entram timidamente nessa equação. Geralmente apenas negociam a venda dos direitos do autor (para editoras, para cinema), não entram na questão dos eventos em si, nem no papel de assessoria de imprensa.  

Nesse meio autofágico, o marketing que funciona melhor não é do escritor popstar é do escritor integrado, aquele que circula no meio acadêmico, que trabalha em editoras, que é amigo dos editores e jornalistas, que senta com ele nas mesas de bar. Pouco tem a ver com o peso obra - muitos dos autores que mais circulam ainda dão os primeiros passos na escrita. Diversos veteranos de peso ficam de fora por não participarem do lobby. O grande Evandro Affonso Ferreira, vencedor do Jabuti de melhor romance ano passado, é um ótimo exemplo.

As festas literárias brasileiras são, antes de tudo, festas de compadres. E se o escritor brasileiro tem de ser um "popstar", então é um popstar fora de forma, fora de moda, mal vestido e bem relacionado. Com a idade, estou chegando lá. 





08/08/2014

A HISTÓRIA DO HORROR

"Schatten"

Terminou ontem o ótimo curso que eu e Murilo fizemos de "História do Cinema de Horror", no MIS. No mundo dos escritores há uma infinidade de cursos, oficinas e laboratórios truque, de autores aventureiros que inventam malabarismos para pagar as contas no fim do mês. E, com um tema desses, era fácil o curso cair na picaretagem.

Mas o professor Carlos Primati - jornalista, crítico e historiador - foi mesmo um mestre no tema. Estou longe de ser um especialista, mas sou fã do gênero, tenho bons livros e assisti a muita coisa. E com certeza ele acrescentou dando panoramas de época, biografia de cineastas, histórias de bastidores, teorias sobre as diversas subdivisões do gênero.

Um dos temas que sempre me perturbam é não só a falta de tradição de obras de gênero no Brasil (terror, fantasia, suspense), como a ditadura do realismo. O cinema brasileiro sempre tem de retratar o "Brasil", sempre tem de mostrar uma "realidade", seja ela da Copacabana bossa-nova, seja das favelas, do sertão. Não há espaço para sublimar. Isso vem mudando lentamente, com filmes mais subjetivos e universais, mas ainda não é possível dizer que exista uma produção fantástica consistente no país.

Discutimos um pouco sobre isso quando chegamos à aula que tratava do terror mundial - e de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, basicamente o único cineasta dedicado ao gênero que teve certo reconhecimento por aqui. Questionei por que o sucesso do cineasta no final dos anos 60 (com "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver") não estabeleceu o gênero no Brasil, com uma série de outros cineastas investindo no terror. O mau exemplo administrativo de Mojica - que nunca conseguiu ganhar dinheiro com sua criação - e a censura pesada da época são parte da explicação do gênero ter sido enterrado, mas apenas uma parte. Porque mesmo na literatura, o terror e o fantástico ficaram sempre restritos ao infanto-juvenil (de Monteiro Lobato a André Vianco). Não há uma literatura de terror brasileira do século XIX reconhecida, por exemplo.

Também discuti um pouco sobre isso na mesa que tive com o Raphael Montes, no Sempre um Papo. Ele apontava o preconceito que sentia com a literatura policial, e o desbravamento que tem feito com o sucesso de seu Dias Perfeitos. Mas se a literatura policial no Brasil é restrita, ainda se pode dizer que há obras e autores reconhecidos e de sucesso (vide o eterno Rubem Fonseca). Em terror não há. Embora alguns autores até tenham vendas bem expressivas (vide Vianco), são renegados à literatura de entretenimento. Parece que não se pode fazer terror com densidade no Brasil.

Primati apontou diversas vezes esse preconceito de certa forma universal com o gênero - que em parte tem fundamento, porque a grande maioria dos filmes de terror é divertimento descartável voltado ao público adolescente. Porém quando o terror é revestido de lastro, estofo e simbolismo, tem uma força sem igual (vide "Psicose", "O Bebê de Rosemary", "O Exorcista", "O Iluminado", "O Silêncio dos Inocentes", "Anticristo" e tantos outros, alguns mais discutíveis pelas imagens gráficas e/ou produção barata que comprometem alguns aspectos, mas garantem a força do gênero.)

Enfim, foram discussões bem bacanas que poderiam ter rendido mais duzias de aulas, mas que tiveram de ser abreviadas pela vastidão de material a ser apresentado (foram 18 horas de curso total, com trailers, documentários e trechos de filmes) e também pela quantidade inchada de alunos em sala (por volta de cinquenta, o que limitava as discussões; eu mesmo me contive para não ser sempre o chato que levantava a mão para fazer uma pergunta ou acrescentar uma teoria.) Deu vontade de mais.

O próximo curso do Carlos Primati é de ficção científica nos anos 1950 - que por ser um tema mais restrito talvez permita discussões mais aprofundadas - para quem interessar, é só ver na página do MIS. Ficção científica não é mesmo minha praia, então vou pular esse. Se rolar um curso específico de "história de cinema de horror no Brasil", não perderei. Eu mesmo não me considero um autor de gênero - mas ainda chego lá; talvez eu precise de referências mais próximas - tenho um flerte com o terror, mas estou mais próximo do thriller e do suspense no meu existencialismo bizarro. Fico feliz em ver que o cinema brasileiro lentamente caminha nessa direção. (Aliás, começam as conversas sobre um possível filme de BIOFOBIA...)

Permaneço aqui no misto de esperança e desânimo de sempre, desbravador e resignado, tentando trazer um pouco de sangue ao nosso dia-a-dia.

05/08/2014

FECHANDO A FESTA

Para encerrar o assunto FLIP, coloco a resenha que escrevi semana passada para a Folha sobre o livro da neozelandesa Eleanor Catton, um dos destaques da festa.

Resenha complicada. Um livro de quase 900 páginas, vencedor do Booker Prize, seria fácil colocar piloto automático e só elogiar. Está longe de ser uma obra mediana - e o talento da autora é inegável - mas eu procuro sempre escrever com o olhar do leitor médio, o leitor de jornal, não uma análise literária profunda, até pelo tamanho e espaço que tenho na Folha.

E o resultado foi esse, uma avaliação de como a proposta do livro pode restringir seu alcance, como ele não faz muito sentido fora de uma esfera de experimentação literária um pouco exaustiva.

Taí:

“Improvável” é um eufemismo para um romance de quase novecentas páginas escrito por uma jovem autora quase estreante que arrebata um dos prêmios literários mais importantes do mundo e consequentemente chega a países “improváveis”, como o Brasil.
“Os Luminares” é o segundo romance da neozelandesa Eleanor Catton, aos vinte e oito anos a autora mais jovem a ganhar o Man Booker Prize de 2013. Ela já havia sido finalista de prêmios como o Orange por seu livro de estreia (“O Ensaio”, publicado no Brasil em 2012 pela Record) o que certamente lhe deu munição e confiança para escrever esse épico e, talvez mais importante, lhe garantiu ser publicada e lida.
Pois, apesar de estar longe de ter um texto difícil – baseado em diálogos, o texto é coloquial e fluido – sua extensão intimida e não é possível identificar UMA trama em “Os Luminares”. A história se desdobra em acontecimentos e personagens como um folhetim do século dezenove (época em que é ambientada).
Doze homens se encontram num salão de hotel na Nova Zelândia para discutir sobre questões que vem instigando a região na época da corrida do ouro, segunda metade do século dezenove. Um forasteiro vindo da Inglaterra adentra o recinto e é recebido com desconfiança, compartilhando aos poucos sua biografia e se inteirando das questões discutidas- um bêbado é encontrado morto em sua cabana, que esconde uma pequena fortuna; uma prostituta tem uma overdose e acorda numa cela com um vestido recheado de ouro; um prospector desaparece deixando suas posses abandonadas. É um pano de fundo clássico, e um ótimo pano de fundo, mas é só o começo (embora tome quase quatrocentas páginas). Esses mistérios vão se desdobrando e interligando e o romance avança trazendo muitos outros – um traficante chinês empenhado em uma vingança; um contrato de doação encontrado sem assinatura; uma sessão espírita comandada por uma notória trambiqueira. Como qualquer folhetim, mais importante do que solucionar parece ser criar mistérios.
Catton obviamente tem talento, escreve com humor e leveza, emprestando a esse tom folhetinesco em certos momentos quase uma sátira, o que impede o tomo de ser maçante e se revela um excelente pastiche. Mas não deixa de ser um pastiche, e não soluciona os principais enigmas: o que este livro traz de novo? Por que ler isso no lugar de Dickens? Para quem foi escrito isso? E, principalmente, quem desbravará “Os Luminares” num país como o Brasil?
Avaliação: Regular
   

03/08/2014

RESSACA LITERÁRIA


Com minha agente Nicole, na Flip. 

Três dias já foi muita coisa. Passei o fim de semana na FLIP, numa maratona de debates literários, sociais vazios e filas de espera em restaurante. Cansativo, mas administrável; não objetivamente produtivo, mas construtivo. Não tinha ideia exata do que a Festa havia virado, mas uma boa noção. E encontrei mais ou menos o que esperava...

Mesa com as agentes literárias Mariana Teixeira, minha Nicole Witt e Lúcia Riff, mediadas pelo Henrique Rodrigues, na Casa de Cultura. Bom ver também a visão das intermediárias. 

Os vencedores do Prêmio Sesc deste ano, Alexandre Rodrigues e Débora Ferraz.

Consegui assistir a nove debates, entre os oficiais, Off-Flip, Flip Mais, programação do Sesc e da Rocco. Eu sempre gosto de saber o que outros escritores têm a dizer, ouvir os colegas, estudar a concorrência, entender um pouco como essa maçaroca funciona. É ótimo ver como cada um tem um processo, cada um tem um drama, todos têm o mesmo drama, nem tudo é como parece de longe. Nesses eventos a gente percebe que há menos descaso e perseguição ao nosso trabalho do que uma longa fila de pessoinhas todas querendo a mesma coisa, a mesma vaga, o mesmo espaço. Todo mundo acreditando que merece. Todo mundo achando pouco. Nossa grama mais verde aos olhos do outro. Nossa bola caindo no gramado ao lado. Troco minha grama por uma piscina. 

O querido Daniel Alarcon, escritor peruano que foi meu colega no Bogotá 39 e estava na programação principal. 


Sinceramente, nestes doze anos de carreira, fiz bons amigos e conheço muita gente querida. E foi bom encontrar muitos desses num final de semana só - Cristiane Lisbôa, Simone Campos, Marcelino Freire, Raphael Montes, Luisa Geisler, Daniel Alarcon, Marcelo Moutinho, Cristiane Costa, Beatriz Resende, Mariana Rolier, Felipe Munhoz e tantos outros - mas também não tivemos tempo e tranquilidade para conversar a fundo (como  acontece em outros eventos), a discussão não se estendeu muito além das mesas de debate, até porque, era difícil se estender para os bares, com a lotação da cidade, e eu não tive pique de me estender muito noite a dentro.

Meu amigo Charly Braun. 



Rafa Cortez (ex-CQC) é meu primo, e também encontrei por acaso por lá. 



Difícil é uma palavra que resume bem a FLIP hoje em dia. Inchada, um pouco desvirtuada, a festa é apenas um carnaval cult para muitos que passam por Parati e não param pra ver uma mesa sequer.

Meu debate com Rafael Gallo e Nereu Afonso, mediados por Fred Girauta, foi numa ingrata manhã de domingo. No horário marcado estava vazio-vazio. Atrasamos um pouco e ficou com uma boa lotação, rendeu boas discussões. 

"Ah, mas já está tudo esgotado", disse um gatcheenho desavisado que conheço de outros carnavais e que encontrei de madrugada nas ruas de pedra. Ele veio mesmo pelo "F" da FLIP, e como tantos não sabia muito o que ia acontecer além de Fernanda Torres e Gregorio Duvivier. Encontrei outro gay de meia idade que também veio só pela festa; avisei da minha mesa no domingo de manhã e ele: "Ah, mas domingo é dia de ir embora." "Sim", respondi, "assista minha mesa de manhã e vá embora"." Obviamente ele não apareceu. 

Domingo finalmente conseguí sentar decentemente para beber e comer com Charly e patota. 


Esse inchaço então é o que dificulta mais sentar para comer, beber ou mesmo usar o celular na FLIP (há mais gente do que antena) do que para assistir as mesas. A ótima programação do Sesc, por exemplo, teve mesas gratuitas sempre cheias, mas não lotadas. Eu vim sem ingresso algum comprado e ainda consegui ver algumas mesas fechadas na tenda principal e na Casa de Cultura. O debate sobre ditatura militar com o Bernardo Kucinski, Persio Arida e Marcelo Rubens Paiva eu assisti pelo telão - ainda que, é o que eu falo, assisti a um debate com o Marcelo sobre o mesma tema, há poucos meses na Praça Roosevelt, e obviamente não estava tão badalado. 

A mesa de Moshin Amid com Antonio Prata eu assisti de pertinho. 


Isso alimenta a discussão se a glamurização da literatura que a FLIP traz realmente gera novos leitores, se amplia o alcance da literatura no Brasil, ou se é mais "Festa" do que "Literária". Para dar um flagrante mais otimista, vi um pasteleiro discutindo entusiasmado sobre o discurso do paquistanês Mohsin Amid. A barraca dele ficava atrás do telão e ele passava o dia trabalhando ouvindo a transmissão das mesas. Nos debates gratuitos que se espalhavam pela cidade, se via muita gente caindo de paraquedas: crianças, adolescentes, gente que só buscava uma cadeira para sentar e acabava ouvindo  o que um autor tem a dizer. Resta saber se esse povo irá além dos discursos e lerá.


Tá tudo dominado. A livraria do Sesc tinha quase todos meus livros bem expostos à venda, incluindo A Morte Sem Nome.

Enfim, foi bom ter estado aqui, e bom também que já acabou. Agora os eventos literários podem seguir um curso menos neurótico, até a próxima FLIP. Não vou participar da Bienal, porque já fiz dois lançamentos em São Paulo, mas ainda tenho muitos eventos este ano em Minas, Porto Alegre e além. O próximo é a FliParanapiacaba, dia 07 de setembro. Fique ligado na "agenda" do blog. 

 Com Cris Lisbôa e Mariana Rolier é só festa. 



NESTE SÁBADO!