Almoço com João Gilberto Noll, no começo do ano.
O querido escritor Sergio Tavares me convidou para estrear uma série no site Homo Literatus, com autores falando de seus contos favoritos.
Meu imortal pessoal é João Gilberto Noll, e o conto "O Meu Amigo", do livro de estreia dele (O Cego e a Dançarina de 1980, vencedor do Jabuti) é daqueles que nem li tão novo (talvez eu até já tivesse sido publicado), mas que bateu uma identificação instantânea, uma admiração para a vida toda.
Sobre o conto, falo nesse projeto aqui. Mas depois fiquei pensando em como Noll revisitou o cenário na sua (ótima) novela juvenil Sou Eu (Scipione, 2009), e como eu mesmo acabei fazendo a minha versão...
Trecho do conto do Noll:
Uma tarde choveu muito forte e mesmo assim nós dois não arredamos da margem do lago, encharcados e lambuzados de barro, de folhas, de plantas, de um tédio pastoso. E ali ficamos até as sete horas da tarde. Final do verão e das férias, as bicicletas deitadas sobre a grama. Eu tinha horror dele, desejava sua morte repentina, sem lhe dar chance de recuperar um único suspiro. Mas na época não sabia que desejava isso, eu achava apenas que não queria mais vê-lo nunca mais. Ele me desprezava. Eu nunca entendi por quê. Eu gostava de entrar no lago, fingir que nadava, mas ele não encostava na água. Ele ficava na margem, e quando eu ficava de costas tenho certeza de que ele me olhava, a minha nuca se arrepiando, o sol indo embora.
E da novela dele:
O menino da cidade saiu do rio, sentou na margem e tentou se concentrar mais uma vez no seu próprio eixo. Mas no momento era difícil voltar para dentro de si mesmo. Viu que sua vida de verão seria mesmo aquela alegria desvairada com o garoto campesino. Aferrado aos próprios pensamentos, aos pequenos tormentos diários da cidade, ele deixaria passar a festa daquele dia ensolarado, uma festa a que ele fora convidado sem saber quem era o anfitrião.
A novela do Noll, não por acaso, foi lindamente ilustrada pelo Alexandre Matos, meu querido amigo e colaborador que ilustrou, entre outros, O Prédio, o Tédio e o Menino Cego. Ele eu descobri primeiro!
Meu conto "Piranhitas" foi escrito entre os dois - bem depois de eu ter lido o conto original, bem antes de Noll publicar a sua novela. Foi publicado originalmente em 2007, em espanhol (onde pirañita é sínônimo de "trombadinha" ou "pivete") na Colômbia (antologia Bogotá 39). No Brasil, saiu em 2011, no meu único livro de contos, Pornofantasma, que ainda está em catálogo. É um conto bem curto para os padrões do livro - mas segue o tema de "sexo e morte", e meu querido amigo Marcelino Freire insistiu que tinha de estar no livro, então dediquei a ele.
Aproveitando assim como homenagem também ao Noll, coloco aqui meu conto na íntegra. (Tenho certeza de que a Record não vai se importar - é meu conto mais curto de um livro de 340 páginas - fica como um aperitivo; acho que já havia publicado aqui, de qualquer forma).
"Piranhitas"
Dois primos paravam à margem do rio. Catorze e treze anos.
Deviam ter esses nomes de meninos — Fábio, Gustavo — para
se chamarem de Binho e Guto. Garotos. Diminuíam um ao
outro. Mas esticavam braços e pernas para dentro d’água. Para
ver se estava fria. Se estava quente.
Não entravam, indecisos. Brincavam, precavidos, agitando
a água, sentindo a temperatura, fingindo se preparar para mergulhar.
Mergulharam tantas vezes, tantas outras, tantas antes,
sem nem mesmo colocar um dedo, sem nem mesmo se importar
com os graus. O calor já estava neles. E sempre haveria
um bom motivo para afundar, refrescar, fugir do arrepio dos
mosquitos.
Agora não, aos catorze, treze... Aos catorze e treze tinham
consciência do perigo. Talvez fossem os braços e pernas, que se
esticavam para dentro d’água. Talvez fosse o ensino, a escola,
Ciências, talvez fosse a tênia solitária. E o rio em que mergulharam
tantas vezes — tantas outras, tantas mais — ganhava
novos riscos, doenças, novos tipos de correntezas.
O mais novo sabia do que tinha medo: piranhas. Dentinhos
afiados trabalhando em conjunto, consumindo tudo o
que ele insistisse em mergulhar. Ele era mais novo, mas tinha
mais carne. Era mais branco, serviria de isca. Como boi de
piranha, seria devorado por elas, enquanto seu primo... seu primo
cruzaria a salvo. Bastava um ferimento aberto. Bastava um
sangramento mínimo. Um corte quase imperceptível, elas perceberiam.
Devorariam o garoto no rio em que já fora menino.
O mais velho tinha medo de outra coisa: doenças. Nadara
entre piranhas — e as pescara — na ponta de sua vara — sabia
que elas não lhe fariam mal. Ele era magro. Era moreno. Era esguio
e alongado, elas se assustariam com seus braços e pernadas.
O perigo permaneceria imperceptível. Caramujos, platelmintos,
sanguessugas. Animais minúsculos que se alimentariam da
sua puberdade, avançariam antes de ele completar quinze. Comeriam
suas entranhas, não deixariam nada para as piranhas.
Os dois ponderavam...
Os dois ponderavam, lado a lado, olhando para a água e tentando
mergulhar os olhos lá no fundo, revolvendo o solo e descobrindo
o que havia de errado, se havia algo escondido, por que
não mergulhar naquele rio em que nadavam desde pequeninos?
Aos poucos, o calor foi suavizando, o sol se pondo, e eles sabiam
que teria de ser logo ou nunca. Logo ou nunca, o rio não
ficaria para sempre lá. O rio correria, secaria, e a vida os levaria
para longe daquela infância que foi transformada em covardia.
Quem funcionaria como isca? Quem serviria de cobaia?
“Você primeiro”, “não, você”, travestiam em gentileza uma coragem
que não tinham. Bastava só mergulhar os pés, bastava ver se
o primeiro sobreviveria. Quando um mergulhasse, e não sobrevivesse,
o outro apenas suspiraria “Ainda bem que não fui eu”.
“Então por que não entramos juntos?”, sugeriu o maior.
Não era o caso, não queriam fazer um pacto de suicídio. Ficaram
em silêncio, concordando. Não queriam mais morrer
juntos.
A água já estava vermelha pelo fim do dia. Logo seria noite
e impossível. Voltariam para casa e depois para a cidade. Mais
nenhuma oportunidade. O rio, a natureza chamando, e apenas
os pés molhados. Metidos dentro de tênis, sentiriam os dedos
enrugando. O tempo havia mesmo passado, as oportunidades,
e eles nem aproveitaram.
Voltariam a ser crianças, num impulso, num mergulho,
antes que fosse tarde. Fábio, Gustavo, Binho e Guto, se derramaram.
Entraram na água até a cintura, deixando de pensar.
Tomaram coragem, foram de ímpeto, estavam na água para
se molhar. O calor ainda era mais forte que os platelmintos, a
água era mais limpa que os mosquitos. Cansaram de abanar os
insetos, limpar o suor, olhar para o horizonte e imaginar o que
estava lá. A correnteza não poderia levá-los. Já eram grandes
demais. Braços, pernas, uns mergulhados, outros ao alcance da
margem. Só um pouquinho, só mais um pouco, só um pouquinho
não fará mal.
Mas a impaciência não é só virtude dos meninos. A ansiedade
também faz chorar crocodilos, jacarés, eu. Já estava no final
do meu dia e cansado de esperar. Que eles viessem até mim.
Que me fossem trazidos pela correnteza. Que nadassem para
meus braços, meu abraço, minha boca. Trabalho sozinho, mas
sou mais esperto que piranhitas. Tenho apetite para os dois,
para comer a carne e palitar os dentes. A doçura do mais novo
e a crocância do maior. Carne vermelha, frango de leite. Se os
meninos não vêm até nós, nós vamos até eles. Posso alcançá-los
à margem. Haverá um dia em que os répteis voltarão a dominar
a Terra.
E como as inspirações nunca estão isoladas, fotos da Sally Mann, como essa, também foram um empurrão para eu mergulhar.