25/09/2017

PRÉ-PÓS-URBANO

Igreja de Satã

A natureza é madrasta. A verdade da mata é impenetrável, intransponível, inabitável, não se pode pôr os pés lá. Não há trilhas, não há frutos, não há para onde avançar nem para onde fugir. Tudo se torna um emaranhado de ramos, picões, cipós. O mato impede o avanço. A mata impede o recuo. Sementes duelam com sementes que duelam com o solo que duelam com formigas que querem levar as sementes para longe. Mamíferos subindo pelas árvores. Pássaros de galho em galho. Frutas mordidas, madeira corroída, nada é harmônico e nada ornamental. Para se ter um belo bosque em seu terreno é preciso uma equipe de paisagistas para vencer a guerra. Ou muito esforço, suor e sangue derramado.


Minha relação pessoal com a natureza sempre foi das mais suaves. Como ser ultra-urbano, nascido e criado em São Paulo (aprendi a andar de bicicleta – aos doze anos – no Ibirapuera, que tristeza), nutro uma visão bucólica do campo, da vida interiorana, como algo que perdi desde o berço. A visão perversa da natureza em BIOFOBIA não é a minha (assim como não é exatamente minha a visão de paternidade – e dos coelhos, por sinal – em Neve Negra); a literatura me serve para explorar o outro lado, entender outros lados. (Se fosse para escrever um romance gay, por exemplo, a mim me interessaria muito mais o ponto de vista do homofóbico.) 

Cachoeira. 

E agora, com marido morando em Maresias, tenho o contato com a natureza renovado. Ainda que não seja fácil administrar essa distância, a mudança dele no final do ano passado deu uma nova configuração não-planejada para a minha vida. E se tem algo que prezo e busco é novas configurações, porque a vida de um escritor (ou de qualquer um) pode ser um poço fundo de tédio, e se me afastei da vida acadêmica, dos mestrados e doutorados foi para VIVER!



Assim, aqui em Maresias, sábado Murilo me acordou seis da manhã para fazermos uma trilha por uma reserva indígena em Boraceia, aqui do lado. Iniciativa do Secretário de Meio Ambiente do município, que queria fazer algumas fotos, e chamou figuras bacanas da região – incluindo o Murilo, como chef do Guató.

Murilo e o "Príncipe-Cacique"

Não nos avisaram que era trilha nível hard. Mais de cinco horas, ida e volta, com muitas subidas, mata fechada. Eu tenho uma resistência excepcional, mas minha forma física nos últimos anos está longe do auge. Fiquei orgulhoso de conseguir – os mais velhos e despreparados pararam no começo. A cachoeira destino final foi de certa forma decepcionante – gostosa, mas longe de ser paradisíaca; já estive em melhores – valeu mais por todo o percurso e contato com a natureza...


...ainda que o contato com a natureza tenha sido de certa forma decepcionante. Estávamos de fato em mata fechada, trilha pouco percorrida, aberta muitas vezes a facão, com subidas difíceis, descidas íngremes, cruzando riachos. Mas, num registro BIOFOBIA, não vimos fauna NENHUMA. Sério. Não havia pássaros cantando. Nenhum macaco. Pisávamos em folhas secas sem nenhuma cobra. Mesmo as formigas e insetos só eram sentidos pelas picadas – voltei com a perna carcomida. Só me lembro mesmo de ter visto uma ou outra aranha (e girinos, a cachoeira tinha girinos).


Mais interessante foi o contato com os Guaranis. Para penetrar na reserva deles, conversamos com o Cacique, ouvimos palestras sobre a luta indígena. Ele nos guiou até o começo da trilha, então nos deixou com “os príncipes”, seu filho e seu sobrinho, meninos pré-pós-púberes que podiam ter qualquer idade entre 13 e 18 (mas ao que parece tinham 18 e 22) que nos guiaram até o final. (Fiquei imaginando uma versão shakespeareana na linha de sucessão do cacicado, com os meninos se matando...).
Reserva.

Os “homens brancos” se comportaram. Eram na maior parte esportistas, gente que respeita a natureza, ainda que nem todos tenham a melhor inteligência social. Uma das meninas seguiu pela trilha fazendo perguntas ao sobrinho do cacique (o “príncipe ilegítimo que assassina o herdeiro”, pensava eu), de certa forma infantilizando-o como bom selvagem – “ah, ele é tão bonzinho!” Pós-trilha, também ouvi os discursos padrões de ataque aos índios como “eles se aproveitam para explorar a terra; eles só se vestem de índios para os turistas.” Isso não deixa de ser verdade. Os índios têm antenas Sky nas suas ocas, a área de convivência da reserva está cheia de lixo, e o discurso do Cacique tem muito de político. Mas não podemos esquecer que é de fato o povo nativo, nenhuma cultura é estática, e eles podem sim escolher o que absorvem da cultura de massa, da sociedade urbana. Quanto mais forem marginalizados, mais vão absorver o lixo que o capitalismo produz. 


Para mim foi uma expedição muito proveitosa, que uniu atividade física intensa com reflexão social; eu nunca tinha parado para pensar profundamente na questão indígena. Gerará um romance épico? Acho que não, deixo isso para você. Mas ampliou meu universo e delineou minhas coxas. 

NESTE SÁBADO!