08/12/2018

BIOFOBIA (2014)


Minha melhor capa. (Meu melhor livro?)


Aos pés da casa, ela se ajoelhava. De botas, luvas,
chapéu, arrancava trevos do solo e brotos de samambaias.
Pragas. Infestavam o terreno e tomavam conta
de tudo, se ela não tomasse conta. Ela nunca pensou
que o mato precisasse ser disciplinado, mas precisava.
Era como tudo selvagem, afinal: animais, crianças,
cabelo. Para parecer apenas natural, tinha de ser contido
— ou pareceria histérico, doloroso, moribundo.
Se o deixasse livre e solto, se tornava desordenado,
agressivo, cruel. A natureza é madrasta. A verdade da
mata é impenetrável, intransponível, inabitável, não
se pode pôr os pés lá. Não há trilhas, não há frutos,
não há para onde avançar nem para onde fugir. Tudo
se torna um emaranhado de ramos, picões, cipós.
O mato impede o avanço. A mata impede o recuo.
Sementes duelam com sementes que duelam com
o solo que duelam com formigas que querem levar
as sementes para longe. Mamíferos subindo pelas
Pássaros saltando de galho em galho. Frutas
mordidas, madeira corroída, nada é harmônico
e nada ornamental. Para se ter um belo bosque em
seu terreno é preciso uma equipe de paisagistas que
vença a guerra. Ou muito esforço, suor e sangue
derramado.

Próximo aos 40, com 7 livros lançados, o sucesso anos atrás, pensava se o melhor já tinha mesmo passado, se minha carreira agora seguiria morna, sem brilho.

Foto de orelha, do Murilo - entalhando a referência para a capa. 

BIOFOBIA foi escrito muito nesse espírito, me sentindo esquecido pelo meio literário e pelo mundo, solteiro havia quatro anos, solitário, depois de ter me mudado para duas cidades em que eu não conhecia ninguém (Florianópolis e Helsinque), começando a sentir o peso da idade, o corpo que não era o mesmo, a cabeça lesada...

Conhecer o Murilo em 2013 foi colocando minha cabeça no lugar. E voltei ao romance adulto (em todos os sentidos).


Boa orelha. (Tinha pedido uma orelha assinada pelo Michel Laub, que provavelmente não gostou do livro e fez um texto que era praticamente uma crítica - a editora ficou puta e novamente fui eu fazer o texto.)

Canalizei todas essas frustrações num personagem, o protótipo de um loser, um quarentão alcoólatra, cocainômaco, um artista sem arte, que vive de um sucesso do passado, que nem foi tão bem sucedido assim.

A escolha pelo roqueiro foi para fugir do clichê do “escritor em crise”, e também para reforçar a dor da juventude perdida – no meio musical, o sucesso têm de acontecer cedo.  A ambientação (o grande personagem da história) é basicamente a casa da minha mãe, em São Roque.

Escrevendo no próprio cenário. 

Foi meu quinto lançamento pela Record. E a primeira vez que tive um (ótimo) trabalho de edição – o Lucas Bandeira de Melo deu ótimas sugestões; uma delas era ir revelando aos poucos a decadência do personagem, de início acharíamos que ele de fato podia ser um rockstar; boa ideia, mas que não se encaixava na minha necessidade de revolver todo o fracasso de uma vida; de todo modo, incorporei essa ideia no roteiro para o cinema.

A equipe do filme que (ainda) não foi.

Sim, há um roteiro para cinema. Com tantos livros lançados e nenhum devidamente adaptado para as telas, abordei o Beto Brant ao encontrá-lo numa festa na casa da Márcia Tiburi. “Quando é que você vai adaptar um livro meu?” Entreguei o livro para ele em seguida e um mês depois ele sugeria que inscrevêssemos o projeto de longa num edital de roteiro. Ganhamos o edital, veio mais uma boa grana, e escrevi o roteiro em parceria com Renato Ciasca, sócio dele, com coordenação do Marçal Aquino.




O livro na verdade já foi escrito pensando nas possibilidades de adaptação – tanto para o cinema quanto para o teatro; não é à toa que é passado todo numa única locação e nunca tem mais de três personagens em cena (pensava em fazer a peça com apenas três atores – dois homens e uma mulher).

Escrevi o roteiro, escrevi a peça – Laerte Késsimos e Eric Lenate se empolgaram em levar ao teatro – mas, como sempre, até hoje não deu em nada. Não conseguiram captar para a produção e se encontra num limbo incerto. 

Gravando o booktrailer. 

Isso remete a uma reflexão importante embutida no livro: até que ponto posso sobreviver nesse “lado B”, nesse universo “alternativo”, sendo sempre considerado “diferente”, “original”, "underground", mas nunca entre os “melhores”. Até que ponto isso é resultado da busca da diferença em si – “quem é diferente não faz diferença” – ou até que ponto eu simplesmente não sou bom o suficiente? Não consigo avaliar. Me acostumei tanto com gente dizendo: “você escreve bem, mas não me identifico com seus temas.”


Ele até conquistara um público fiel, uma aura cult,
mas nunca prêmio algum, nunca fora além. Nunca
fora cantor do ano, sua banda nunca a mais pedida
no rádio. Talvez não merecesse — quem poderia dizer?
Ele próprio não tinha capacidade de avaliar. Só
queria acreditar, precisava acreditar; é muito duro ter
de se contentar com a própria mediocridade. Nem
todo mundo pode ser grande, é verdade. Mas mesmo
um vendedor de concessionária pode ser rei dentro de
casa, pode ser exemplo dentro de casa, pode ser chefe
de família. Ele era exemplo-rei-chefe de quê, de uma
quitinete vazia no baixo augusta? Era esse o ponto.
Via tantos outros artistas supervalorizados. Talvez
não quisesse realmente — a sua era uma música mais
alternativa, menos comercial. Nunca esperou unanimidade,
nunca quis ser mainstream. Não podia esperar
conquistar as massas. Porém, quem faz diferente não
faz a menor diferença. Quem não diz o que já se sabe
não é ouvido. Agora já fazia quase uma década que
não gravava e continuava enganando em shows com
covers e sucessos do passado. Semissucessos do passado.
Grandes fracassos.


Tem gente (como a Ivana Arruda Leite) que acha que reclamo demais – ganhei aí um prêmio ou outro; publiquei sempre por grandes editoras, tenho boa entrada na mídia – mas geralmente é gente que não gosta do que eu escrevo, que acha que tenho mais do que mereço.

Bem, ao menos tenho mais do que o André, meu personagem - criá-lo fez parte disso, de colocar um ser em baixa para eu me sentir melhor nas minhas conquistas...


O livro foi bem resenhado. Adorei um texto do Galera sobre o livro no Globo. Só no Estadão que teve uma crítica demolidora – André de Leones já tinha feito uma avaliação péssima no Goodreads e PEDIU para escrever no jornal (segundo me disse o pessoal do próprio Estado); se tivessem encomendado para ele a resenha e ele não tivesse gostado, entendo, tá no direito de meter o pau, mas que filho da puta PEDE para publicar uma resenha metendo pau num colega? Se eu não gosto de um livro, eu não sugiro. Não tenho (não tinha) nenhuma treta pessoal com esse ser, nunca o encontrei pessoalmente, mas se tornou inimigo mortal para o resto da vida.



O mais bacana foi a entrevista no Metrópoles, com Manuel da Costa Pinto, que adorou o livro.


Com Nicole. 
O livro é dedicado a Nicole (Witt), que foi minha agente por mais de dez anos, que eu sentia que era a única que esperava mais um livro meu. A capa foi feita pelo Taiya Locherbach, amigo de Florianópolis. Eu entalhei o título numa árvore, como referência, e mandei para ele, que entalhou sua própria árvore e tirou a foto. Também gravei um booktrailer - pela primeira e última vez -, gostei bem do resultado, mas é um puta trabalho, a gente mobiliza um monte de gente e só tem meia dúzia de visualizações; acho que não agrega em nada ao livro.


Irmãozinho Taiya me deu minha melhor capa. 

(a versão estendida do trailer)


Continua em catálogo na Record – foi outro livro que não vendeu nada. Com certeza é dos melhores meus, embora o povo em geral prefira o romantismo gótico dos primeiros.

NESTE SÁBADO!