O DÂNDI E A VEREADORA
Estive hoje na Feira Literária de Ribeirão Preto. É um acontecimento legal, nos moldes da Feira de Porto Alegre, (só que obviamente menor). Muitos debates interessantes, estandes montados na praça da cidade, uma comunicação maior com o público do que nas Bienais, ainda que eu ache estranho essa idéia de "feira", para vender livros.
Eu fico um pouco enjoado, todo aquele papel empilhado, haha, não acho que esse formato seja o ideal, é coisa demais e eu acabo sem conseguir ver nada. Bom para não gastar. De qualquer forma, é o único contato que muita gente tem com livros, por isso é legal a Feira de Ribeirão ser montada bem na praça central, sem cobrança de entrada, livre acesso aos mendigos e tudo mais.
Participei de um debate às 11h da manhã com a Soninha Francine (vereadora, comentarisa esportiva, ex-vj da MTV). Considerando que era manhã de domingo e chovia, até que ficou cheio, mais ou menos 50% do auditório. Foi um pouco estranho porque, como eu previa, eu a Soninha não tínhamos praticamente nada em comum para debater, então intercalavam-se duas discussões completamente diferentes. Mas surgiram perguntas interessantes, o debate foi bem longo, eu li um conto inédito e, novamente ao contrário das bienais, lá parecia que ninguém tinha pressa e que todo mundo podia fazer sua pergunta.
Também demos entrevista para uma TV local, mas esqueci de perguntar quando vai ao ar... Só sei que é um programa chamado "Tapete Mágico" (algo assim?).
Conhecer a Soninha foi ótimo. Almoçamos juntos e voltamos no mesmo vôo para São Paulo. Ela é uma pessoa incrível, inteligente e queridíssima e acabei tendo de agradecer à insanidade dos organizadores da Feira por nos colocar na mesma mesa.
E bom que estava frio, porque eu pude caprichar no modelito dândi. Haha.
Mudando de assunto, coloco aqui uma resenha que escrevi para a Folha e saiu semana passada. É do romance "Michelângelo, o Tatuador", da Sarah Hall:
A história da tatuagem tem diversas origens. Assim como a pintura, surgiu em povos primitivos de todas as partes do mundo e se desenvolveu com diferentes técnicas, significados e simbologias. Para retratar o universo da tatuagem, a jovem escritora inglesa Sarah Hall poderia ter seguido várias direções. Poderia focalizar o cenário clubber do final do século XX, as tribos indígenas e suas escarificações, os artistas performáticos de body art, mas optou por se dedicar àquele que talvez seja o mais rico imaginário sobre o tema: uma arte de marinheiros.
"Michelangelo, o Tatuador" é um romance de marinheiro, embora quase a totalidade da narrativa se desenvolva ancorada. Muitas das figuras pertinentes ao tema estão presentes: navios, sereias, bruxas, gigantes, animais amestrados, gêmeas siamesas, areia movediça. Entretanto, o tratamento que a autora dá a elas é de um realismo simbólico, identificando essas figuras míticas no mundo real de um tatuador; flertando com o fantástico mas não se entregando a ele de fato. E é essa a delícia de "Michelangelo, o Tatuador".
O romance conta a história de Cyril Parks, filho de um marinheiro com uma pseudo-bruxa, que, na adolescência, no começo do século XX, começa a aprender a arte da tatuagem em sua terra natal, a cidade litorânea de Morecambe, no norte da Inglaterra. Após a morte de sua mãe e de seu mestre, Cyril muda-se para os Estados Unidos, onde passa a trabalhar como tatuador num show de aberrações em Coney Island e onde conhece a mulher que seria sua "Capela Sistina" .
A forma como Sarah Hall acompanha toda a vida do personagem e a falta de acontecimentos extraordinários faz com que, muitas vezes, o texto mais se pareça com uma biografia romanceada do que com um romance de ficção. Consciente disso, a própria autora aproveita os agradecimentos finais do livro para ressaltar que se trata de um texto de ficção. Cyril poderia representar qualquer tatuador real de sua época, nem genial nem imperito.
Esse tom biográfico do livro, que suprime hipérboles, pode ser visto como um mérito para alguns, mas certamente como um afrouxamento para outros. A primeira parte do livro, por exemplo, focaliza a infância e adolescência de Cyril com uma latência tão rica, que acaba criando uma expectativa no leitor por maiores desdobramentos nos momentos seguintes, coisa que não acontece. À medida que a narrativa se desenvolve, o protagonista perde força e os coadjuvantes parecem surgir apenas para compor um cenário. O Michelangelo Elétrico, alcunha do personagem e título original do romance, é desligado da tomada.
Ainda assim, a capacidade dissertativa da autora e todo o panorama que se revela ao redor do personagem fazem com que "Michelangelo, o Tatuador" seja uma experiência enriquecedora. Não é a toa que foi um dos finalistas do Booker Prize do ano passado. Sarah Hall é uma mulher que mergulha fundo em universos alheios e que tem talento para descobrir a verdade, seja ela suave ou dolorosa. (Três estrelas)