Foto: Wendy Ewald - "My brother hit by a car"
Não bebo mais gasolina.
Madrugada passada assistia a um debate sobre a lei seca. Eu não dirijo há anos, há anos que não tenho mais carro, mas acho que tenho direito a atropelar uns meliantes. Tenho direito à fratura exposta, à falência múltipla dos órgãos. Essa nova lei nos priva dos riscos. E sem riscos não há vida...
Também detona com o delicado equilíbrio dos planos de saúde, das seguradoras de automóvel, da fábrica de mertiolate, até da polícia rodoviária. Com menos acidentes no trânsito, muita gente sai perdendo. Sem falar nos bares, nos restaurantes...
Sofismas à parte, o que nunca se coloca nessa discussão é a culpa do carro em si. Anos e anos incentivando o transporte rodoviário individual. Anos e anos sem investimento e planejamento no transporte público. Agora percebem que a coisa não está dando certo e querem punir os motoristas sem dar outra opção.
Quem sair de noite e beber volta para casa como? Pergunte à Angélica!
Vá de táxi, que é acessível para a renda do brasileiro...
E nas cidades pequenas, no interior, onde não há táxi? Bem, nessas cidades geralmente também não há cinema, teatro, algumas vezes nem casa noturna. A unica diversão são os... BARES.
Os acidentes seriam bem menores se simplesmente existissem alternativas para as pessoas não precisarem de carro. Há tanta gente bebendo e dirigindo porque não há opção, é perigoso voltar a pé, é doloroso esperar o ônibus, o metrô vai buraco abaixo e fecha quando a gente mais precisa. Se eu for bonzinho e não beber, Deus vai resolver o problema? Com a lei seca, o transporte público vai pra frente? Ou simplesmente é o lucro de bares, restaurantes e casas noturnas escorrendo pelo ralo?
"Não, esta noite estou dirigindo. Esta noite fico só na cocaína."
E quem for preso por dirigir meio alcoolizado? Não vai ocupar o lugar que você deveria ocupar na cadeia? Não vai deixar em aberto a conta no boteco? Não vai perder para sempre a chance de chegar em segurança até em casa, até minha cama, até mim? Não vão tirar de circulação todos os petizes levemente embriagados que a gente poderia seduzir?
Sem álcool no meio do caminho, será que consigo atrair alguém até aqui?
Querem é que a gente fique em casa. Cada um na sua. Querem tirar os jovens das ruas. Eles têm medo da testosterona, das extremas vontades. Querem que a gente fique no armário, jogando Banco Imobiliário, torcendo por um Playstation 3.
Me assusta esse conservadorismo da atual legislação brasileira. Cigarro já está proibido. Pode vender, mas está proibido. De cerveja permitem os comerciais mais imbecis, mas sempre com um pseudo alerta no final. Daqui a pouco vão censurar marchinha de carnaval: "Eu vou beber, beber até cair - mas com moderação - me dá, me dá, me dá, oi, me dá um dinheiro aí!"
Não estão resolvendo o problema. Não estão resolvendo meus problemas. Eu não estou mais feliz. Preciso de mais uma dose.
A culpa é do carro. Da gasolina. Do petróleo. Não do álcool. É o Petróleo que move o apocalipse dos nossos tempos...
E é esse líquido negro que escorre da minha boca...
Falando nisso – e mudando de assunto – “A Culpa é do Carro” é mote também de um dos contos do novo livro de Marcelino Freire. Está chegando nas livrarias AGORA (de motorista particular, porque nem os caminhões mais podem circular) e será lançado dia 14 de agosto, no B_arco (odeio o nome desse lugar) aqui em São Paulo.
Rasif – Mar que arrebenta, tem dezessete contos (quase todos inéditos) de Marcelino e gravuras de Manu Maltez. O texto de apresentação é meu, recheado de duplos sentidos, como o Marcelino bem gosta. Para mim, foi uma honra fazer. Até porque, conheci a obra do Marcelino bem antes de termos ficado amigos. Eu morando lá em Porto Alegre, ganhei “Angu de Sangue” de presente. Li, adorei. Foi meu primeiro contato com essa “nova literatura”, com contemporâneos mais contemporâneos, com gente que estava surgindo enquanto eu ainda não havia publicado.
Então vai aí meu texto de apresentação pra “Rasif”, o resto, você procura na livraria.
Nos círculos literários, nas rodas de samba, são comuns os comentários sobre a importância de Marcelino Freire como agitador cultural, sobre os eventos que promove, os autores que divulga. E, algumas vezes, quase se esquece dele próprio como autor, de seus contos, personagens e frases. Quase...
Eu, vira e mexe, me lembro de seus livros anteriores: uma bicha nostálgica aqui, uma criança abandonada lá, um casal de múmias e um bando de filhos da puta “cuspindo chute para todo lado”.
E é a persistência desses personagens e frases que provam, de fato: Marcelino é um autor que permanece. E precisa ser lido agora, neste volume, em voz alta, como ele faz tão bem.
Sua paixão por sons e palavras é o que torna a sua prosa tão próxima da poesia, do teatro (e que a faz tão difícil de ser traduzida para outras línguas, diriam os preguiçosos). Mas não podemos deixar de lado seu talento como contador de histórias, seu olhar agudo para os miseráveis, para os abençoados.
Neste Rasif – Mar que Arrebenta temos os terroristas inflamados, o homem-bomba e uma nova bicha nostálgica (vide o conto-canto que fecha o livro, intitulado O Futuro que Me Espera). Temos o travesti em silêncio, o poeta sem pai, o Papai Noel ameaçado. Histórias que lidam com finais dos tempos particulares, com o apocalipse dos dias atuais, a guerra cotidiana — tudo sublinhado e sublimado por uma beleza lírica, onírica, melancólica e, por vezes, divertida, com um humor satírico e sarcástico. São narrativas de amor cruel e de ódio apaixonado. Prosa para detonar barreiras e alargar fronteiras.
“Amor é a mordida de um cachorro pitbull”, é o pentelho deixado numa roupa suja, é tiro no coração. E por aí vamos. Com essas frases e sentimentos, me peguei revivendo, logo depois da leitura, os contos de Rasif. Contos para serem guardados com cuidado, arquivados. Porque, mais cedo ou mais tarde, eles explodem novamente em nossa cabeça.
Coroando ainda mais a edição, estão as gravuras de Manu Maltez, outro jovem artista de belezas estranhas, incomuns equilíbrios.
Marcelino Freire precisa ser lido agora — mais uma vez e neste instante — em voz alta. Deixe o samba para outra hora. Penetre nessas novas rodas. Como ele bem diz, numa frase que já eterniza este livro: “tudo em mim é bailarino”.
E pra quem não sabe: Marcelino Freire é escritor Pernambucano, autor de vários livros de contos. Seu livro mais recente, "Contos Negreiros", recebeu o Jabuti, em 2006.