Os olhos... ela puxou do pai (foto: Sally Mann)
Hoje não foi de sangue...
Me derramei em esperma e fui internado num hospital para que enfermeiras me sugassem com suas pipetas e buretas e gametas e seringas. Me derramei em esperma. E enquanto repousava sob lençóis brancos, vieram me trazer o resultado.
Sonhei que estava internado. Num hospital, doando esperma para a continuidade da raça. Para cumprir o meu papel, ejacular meus girinos em filhos, no caos inevitável ao que o mundo se derrama. O esforço me exauriu. E sonhei que estava internado, num hospital, esperando me recuperar de uma doação exagerada, que já trazia frutos imediatos.
Fiquei esperando no quarto, para ver o que trariam até mim.
A enfermeira me trouxe embrulhada uma linda menininha de olhos azuis. Loira, de olhos azuis. Seriam meus? Ruivo eu nasci, derramado em vermelho. Loira, de olhos azuis. Seria minha? A menina já me olhava sorrindo. E me chamava de “papai”.
Aí houve a chance de eu contestar...
Não importa que a menina já estivesse crescida. Não importa que de girino em sapo e de sapo em menina minha filha crescera enquanto eu dormia. O problema era: como ela me reconhecia?
“Esta criança foi treinada para chamar de ‘papai’ qualquer homem que a pegar no colo”, protestei . E imaginei que a menina rodasse todos os quartos, todos os pais, todos aqueles que haviam se derramado, para que a reconhecessem como filha, depois seria levada. “Você sabe, não podemos revelar a identidade da mãe, nem o destino da criança. Apresentamos a menina ao pai apenas para ele ter certeza de que sua função foi cumprida.”
Cumpri minha função com uma filha de olhos azuis.
Era isso que as enfermeiras queriam que todos os pais pensassem. Era esse ideal que o hospital propagava. Todos os pais repousando, satisfeitos. Todos os pais de uma filha - uma única filha - perfeita...
(Sally Mann)
Hoje não foi de sangue...
Me derramei em esperma e fui internado num hospital para que enfermeiras me sugassem com suas pipetas e buretas e gametas e seringas. Me derramei em esperma. E enquanto repousava sob lençóis brancos, vieram me trazer o resultado.
Sonhei que estava internado. Num hospital, doando esperma para a continuidade da raça. Para cumprir o meu papel, ejacular meus girinos em filhos, no caos inevitável ao que o mundo se derrama. O esforço me exauriu. E sonhei que estava internado, num hospital, esperando me recuperar de uma doação exagerada, que já trazia frutos imediatos.
Fiquei esperando no quarto, para ver o que trariam até mim.
A enfermeira me trouxe embrulhada uma linda menininha de olhos azuis. Loira, de olhos azuis. Seriam meus? Ruivo eu nasci, derramado em vermelho. Loira, de olhos azuis. Seria minha? A menina já me olhava sorrindo. E me chamava de “papai”.
Aí houve a chance de eu contestar...
Não importa que a menina já estivesse crescida. Não importa que de girino em sapo e de sapo em menina minha filha crescera enquanto eu dormia. O problema era: como ela me reconhecia?
“Esta criança foi treinada para chamar de ‘papai’ qualquer homem que a pegar no colo”, protestei . E imaginei que a menina rodasse todos os quartos, todos os pais, todos aqueles que haviam se derramado, para que a reconhecessem como filha, depois seria levada. “Você sabe, não podemos revelar a identidade da mãe, nem o destino da criança. Apresentamos a menina ao pai apenas para ele ter certeza de que sua função foi cumprida.”
Cumpri minha função com uma filha de olhos azuis.
Era isso que as enfermeiras queriam que todos os pais pensassem. Era esse ideal que o hospital propagava. Todos os pais repousando, satisfeitos. Todos os pais de uma filha - uma única filha - perfeita...
(Sally Mann)
Quero meu filho hidrocefálico – revindiquei. Quero meu bebê desdentado. Quero reconhecer nele meus defeitos – o meu drama – quero vê-lo chorando e sofrendo. Quero um filho só meu - meu filho único. Quero meu fruto imperfeito.
Apenas a levaram de mim. Se eu não podia gerar uma filha perfeita, não estava preparado para ser pai.
Nunca vou ser pai, sonhei.
Acordei com a sensação de que fiz o que pude. Acordei em lençóis limpos, secos, imaculados. Não quero ser responsabilizado.
Crianças produzem gases. Crianças poluem o mundo. Crianças cutucam com os dedos melados a camada de ozônio.
Não posso fugir de ser irresponsável.
Crianças produzem gases. Crianças poluem o mundo. Crianças cutucam com os dedos melados a camada de ozônio.
Não posso fugir de ser irresponsável.
Filhos perfeitos são aqueles que crescem castrados.
Ou para ser mais óbvio: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." (Cutucando Machado com meus dedos melados...)
...foi só um sonho.
Ou para ser mais óbvio: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." (Cutucando Machado com meus dedos melados...)
...foi só um sonho.
A filha imperfeita.
(Deus do céu, estou escutando Paul McCartney. O que anda errado comigo?)