22/09/2008

TRAÇA DO DESTINO

José Mindlin e eu, em sua biblioteca (Foto de Cris Ameln para Joyce Pascowitch)


"A gente passa, os livros ficam", diz José Mindlin hoje, na Folha de S. Paulo. Mindlin ainda não “passou”, mas sua biblioteca está sendo doada para a USP, onde deverá ser preservada para as próximas gerações.

Que próximas gerações?

Ler a matéria me fez pensar novamente no futuro da literatura, me fez temer pelo meu destino, o nosso destino, o futuro da humanidade.


Talvez os próprios livros já tenham passado antes de José Mindlin – roídos pelo apocalipse dos nossos dias. Independentemente da atemporalidade e da qualidade, me pergunto se algum autor de hoje ainda será lido, preservado, catalogado, cem anos no futuro. Me pergunto se não é mais provável que os autores de hoje sobrevivam em formol, em plástica, com corações de borracha do que seus próprios livros. Daqui a cem anos, haverá algum leitor sobre a Terra?

Pela lucidez e energia que ainda tem José Mindlin, capaz dele ser o único que chegará lá.


(David Foster Wallace já se foi... E confesso que me encanto em ver que escritores bem-sucedidos ainda se suicidam nestes dias...)

Fica então aqui a homenagem ao Mindlin, e à sua biblioteca em despedida. Minha mãe trabalhou muito tempo lá. Eu fiz um longo perfil do Mindlin, ano passado. Aproveito agora para reproduzir na íntegra:
UMA SELVA DE PRATELEIRAS

Confesso, na primeira vez em que estive na biblioteca de José Mindlin, há uns sete anos, minha vontade foi de abrir todas as gaiolas e deixar os pássaros voarem livres pela vizinhança. Ok, talvez nem todos fossem pássaros, talvez algumas jaulas guardassem tigres, rinocerontes, quem sabe tiranossauros rex? Que engolissem os vizinhos então, animais só se justificam em liberdade. Como eu poderia entender a vida selvagem observando-a num zoológico?


Mas estamos falando de livros. E de uma biblioteca. A maior biblioteca particular de livros raros do Brasil. E a alegoria não é tão descabida quando percebemos que a fauna da literatura nativa vem, cada vez mais, sendo impiedosamente assassinada para dar lugar a bestsellers (ou melhor, pastos para criação de gado). Eu mesmo sempre achei que os livros deveriam estar nas ruas, no metrô, na vida das pessoas, e não catalogados como espécies raras numa biblioteca. Entretanto, esse é um pensamento restrito, de quem acredita que o zoológico existe para tirar o animal da selva. Observando com um pouco mais de cuidado, percebemos que o papel é outro: proteger a criação, preservar as origens, e contribuir com a reprodução dessas espécies raras. Como fazem as melhores bibliotecas.


Isso só percebi ao me aprofundar um pouco mais no universo, no trabalho e nas paixões de José Mindlin. “Todo livro que se procura e não consegue se encontrar é raro”, coloca ele em seu segundo livro de memórias Uma Vida Entre Livros (Edusp-Cia das Letras, 1998). Sua biblioteca não representa, de forma alguma, a reta final de obras que foram esquecidas ou fossilizadas, mas sim um local onde, exatamente por serem procuradas, essas obras ganham um novo status. Ela cumpre um papel de resgate e revitalização, para que o livro possa ser preservado, lembrado, lido. Podemos observar isso facilmente dando uma rápida olhada em suas prateleiras, que guardam não apenas livros há muito fora de catálogo, mas também versões preciosas de obras obrigatórias, como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ambos em originais datilografados e corrigidos a mão pelos autores.


Mas como obras iguais a essas vieram despertar o interesse de um industrial filho de judeus russos?


Observando a longa história desse homem de 92 anos é possível entender: ele nunca foi um industrial apaixonado por livros – como ele mesmo ressalta - foi sempre um bibliófilo que, em certo momento da vida, atuou na indústria.


Sua convivência com os livros, inclusive, começou bem antes de suas atividades profissionais. Em sua família, sempre se deu valor à leitura, embora as artes plásticas fossem a maior paixão de seu pai. Mindlin acredita ter herdado esse gosto pelas artes, mas com foco nos livros: é um grande admirador do aspecto visual e gráfico das publicações, admiração essa que direciona parte das escolhas de sua coleção.


Entre suas obras raras só em raras exceções adquiriu exemplares em mau estado, e esses foram restaurados por sua esposa e grande companheira, Guita Mindlin, falecida em junho do ano passado, após 68 anos de casamento.


Apesar de suas origens judaico-russas, José Mindlin nunca teve um interesse específico por esse tipo literatura. “Eu li os bons autores russos – como Tchekov – não por serem russos, mas por serem bons”. Afinal, nascido e criado aqui, nada mais natural que ele quisesse se aprofundar na pátria que seus pais lhe ofereceram.


Uma grande influência em suas primeiras leituras foi o seu irmão mais velho, Henrique. “Com doze anos eu lia os livros que ele lia com dezesseis, então me tornei um leitor precoce”. Tão precoce que, aos treze anos, começava sua coleção de livros raros adquirindo sua “moedinha número um”, o livro Discurso Sobre a História Universal de Jacob Benigno Bossuet, em edição portuguesa de 1740. Começava aí uma paixão que duraria a vida toda.


Pelo fato de ter se interessado desde cedo por livros, pergunto se ele não era um daqueles garotos introvertidos, isolados, que é caçoado pelos colegas. Ele nega. “Sempre fui muito falador, tinha amigos.” - Mas e quanto às piadas, os garotos não tiravam sarro por seu hábito de colecionar livros? “Bem, isso foi a vida inteira. Até hoje. As pessoas sempre tiram sarro de quem dá tanto valor à leitura”, relembra. Observa, inclusive, como coleções de pintura e obras de arte em geral sempre tiveram mais status do que as bibliotecas. Talvez por isso sua atividade como industrial da Metal Leve tenha parecido algumas vezes mais significativa do que a de bibliófilo.


José Mindlin se formou na Faculde de Direito do Largo de São Francisco na década de 30. Afirma ter aprendido mais literatura do que Direito na faculdade. “Eu me sentava no fundo da classe para ler literatura durante as aulas. Em casa, eu lia as apostilas do curso.” Na faculdade, conheceu também uma outra grande paixão, sua mulher Guita, com quem se casou ainda durante o curso.


Além de advogar, trabalhou como repórter de O Estado de S. Paulo (em 1930, ainda antes da faculdade) e em 1950 fundou, em parceria com colegas, a Metal Leve, pioneira fábrica de pistões. Destacou-se ainda como editor - ajudando a divulgar obras importantes e, em alguns casos, quase esquecidas - Secretário de Cultura de São Paulo e, obviamente, escritor .


Hoje, tem em sua biblioteca cerca de 35 mil títulos, que somam mais de 60 mil volumes (pois muito dos títulos são encontrados em diversas edições, como no caso de Os Lusíadas, de Luis de Camões, cujos diferentes volumes ocupam uma estante inteira). Desses, acredita por sua última estimativa, já ter lido em torno de 8 mil, e que levaria cerca de 300 anos para ler toda a sua biblioteca. “Existe sempre a ilusão de que se vai conseguir ler mais do que na realidade se consegue. Depois vem o desejo de se ter à mão o maior número possível de obras de um autor de quem se gosta.” – explica ele em seu livro de memórias.


Obviamente, sendo um bibliófilo há quase oitenta anos, há décadas escuta que “o livro vai desaparecer”, que vai ser substituído por outras artes ou versões digitais, mas não acredita nisso. “Ao menos, não no quadro que existe hoje. Ainda não existe nada para substituir o livro.” Pelo contrário, ele acredita que as novas tecnologias de publicação ajudam a tornar o livro mais bonito e mais barato. A tecnologia vem a serviço do livro. Ressalta que, hoje em dia, as edições brasileiras são mais caprichadas, mais bonitas do que há cem, cinqüenta anos. “O livro bonito não é necessariamente mais caro que o livro feio, e ajuda a vender” – relembra Mindlin, que aponta que esse pensamento só começou a ser adotado no Brasil à partir da década de 50, quando se retomou um cuidado com o aspecto gráfico do livro.


Mas se é otimista em relação ao presente e futuro do livro impresso, é mais crítico quanto ao futuro das livrarias. Percebe o fim das livrarias menores, mais íntimas, onde se conheciam os livreiros e esses realmente sabiam o que estavam vendendo. Essas lojas pouco a pouco vão sendo engolidas por grandes redes. “Mas isso não acontece só com as livrarias”, aponta. “É o mesmo com pequenas vendas que entregavam em casa e marcavam as contas de seus fregueses, e hoje são substituídas por redes de hipermercados.”

E quanto aos bons escritores, esses pássaros raros que cantam em gaiolas cada vez menores? Eles seriam preservados pelo tempo?

Mindlin, Elisa Nazarian e eu. (Na Disney dos escritores, ele seria quem, o Mickey?)

Em 2004, num debate sobre literatura no Itaú Cultural, o escritor Ignácio de Loyola Brandão respondendo à pergunta sobre “Quais são os bons escritores que estão surgindo hoje” soltou a velha máxima: “O futuro é que dirá. Os bons ficarão”, o que me fez contestar, na ocasião. Agora tenho a oportunidade de inverter a pergunta ao maior colecionador de livros raros do Brasil. Os bons ficam realmente? No seu garimpo por livros raros, não são descobertos muitos ótimos autores que hoje estão esquecidos? Mindlin assente, e explica que muitos ótimos autores não são reeditados por razões comerciais, porque não vendem, acabam sendo esquecidos. Outros por motivos pessoais, por não formarem boas relações no meio editorial, acabam gerando dificuldades em continuar publicando. Se os maus tendem a desaparecer, também não se pode garantir a sobrevida dos bons.


Então este é um pouco do papel de sua biblioteca e do que toda boa biblioteca deve ter. A preservação da memória. Pensando nisso, sua Brasiliana (livros sobre assuntos brasileiros) foi doada para a USP e será transferida para lá em dois anos. Assim ele assegura a continuidade de seu legado.


O próprio José Mindlin também já tem sua imortalidade assegurada. Em maio do ano passado, convidado sem campanha numa quase unanimidade, foi eleito Imortal da Academia Brasileira de Letras.


E como autor? - Mindlin publicou dois belos voulmes contando sua história de vida e sua relação com os livros, registrando também a história por detrás de sua biblioteca. - Como autor, desejaria que suas obras permanecessem acessíveis por anos a fio ou desejaria que se tornassem elas próprias obras raras, cobiçadas por colecionadores?


“As duas coisas. Quero que estejam sempre disponíveis em edições atuais” (holográficas, brinco eu )“mas que sua primeira edição seja cobiçada como uma obra rara” – sorri.

Eu, como ave tropical, também não poderia querer outra coisa.

(Texto publicado originalmente na revista Joyce Pascowitch, fevereiro de 2007. É bom eu desenterrar essas matérias antigas, porque este blog está precisando de mais atualização, embora eu ache que você nem lê direito, que você só olha as fotos...)

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Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...