14/07/2019

CRISE NA FICÇÃO, FICÇÃO NA CRISE

Eu, num raro registro como "escritor de sarau". Nevermore.

Há mais de um mês a Folha me pediu uma análise do momento atual da ficção no Brasil. Conversei com muita gente bacana, escritores, editores, curadores, mas a falta de espaço para literatura no jornal foi adiando a publicação, diminuindo o texto, e enfim corremos para publicar a tempo na Flip, este fim de semana.

Pelo tom que o texto tomou, achei que não convinha colocar minha visão pessoal, embora eu não concorde com muito o que foi dito por lá. Aproveito então para discorrer um pouco aqui.

Segue o texto original, sem os cortes, com minhas colocações abaixo:



O mercado editorial brasileiro vive o pior momento do século. Se no início dos 2000 o cenário era promissor – com a onda de “jovens escritores”, a proliferação dos eventos literários (como a Flip, que estreou em 2003 e inspirou uma série de festivais pelo Brasil) e as compras governamentais – hoje as livrarias decretam falência, os festivais perdem patrocínio é os artistas são vistos como vagabundos, perseguidos pelo atual governo e sua “gente de bem.”  Os cachês para os autores (quando existem) são os mesmos desde o início do milênio, o espaço para literatura na mídia tradicional se espreme, e até para ser resenhado hoje é preciso “investir” (visto a prática nefasta dos booktubers de cobrar diretamente dos autores por “resenhas”). “A mamata acabou”, mas, de alguma forma, os escritores sobrevivem.

            Falar em “crise na ficção brasileira” é como um pleonasmo, se a priori a ficção nasce da crise (ou de algum tipo de crise). Entretanto, ao mesmo tempo em que se dificultam os mecanismos para criar, comercializar e promover a literatura, os escritores brasileiros também se encontram numa crise ideológica: como fazer ficção pura no momento político em que vivemos? Até onde vai a necessidade de retratar uma realidade, e levantar bandeiras, até onde o ficcionista tem o dever de criar algo novo e próprio?
            O argentino-paulistano Julián Fuks, autor de “A Resistência” e vencedor do Prêmio Saramago, defende há tempos o que ele chama de “literatura ocupada”, que aborde as questões mais importantes do momento. “Tenho pensado numa literatura que não apenas responda às circunstâncias, mas aja sobre elas. E então não se trata só de deixar que o presente emerja na literatura, e sim que a literatura se deixe ativamente ocupar pelo presente, pela política, pela luta. O ato de ocupar tem sido central no exercício político: ocupar praças, ruas, escolas, edifícios públicos. O que nos impediria de pensar numa literatura ocupada?”


Fuks

            Fuks reconhece que, com esse pensamento, a ficção pura não lhe basta. “O conceito de ficção se fez um tanto problemático para mim. Há tempos tenho sofrido com a arbitrariedade de inventar histórias, inventar personagens, dotá-los de nomes e biografias. Nem por isso vou parar na não-ficção. O que tenho feito é algo como uma ficção sem fabulação, uma ficção como tentativa de aproximação ao real.”
            Preocupação semelhante tem o escritor e agitador cultural pernambucano Marcelino Freire, que há tempos se aproxima de uma literatura engajada. Ano passado ele foi um dos organizadores da antologia independente “Lula Livre, Lula Livro”. “Reunimos 90 escritoras e escritores brasileiros em textos inéditos. É um livro político, para eu não me sentir um escritor bundão, que só vive sentado, olhando a paisagem pegar fogo. É preciso dizer de que lado se está, comprometer-se. Boa parte da literatura brasileira é frígida. Vive na redoma faz tempo.”  


Marcelino. 

            Esse caráter político da literatura, que tem tomado o protagonismo, dá a impressão de a ficção estar cada vez mais na retaguarda. "Talvez seja possível dizer que vivemos em um momento onde a não-ficção vai bem comercialmente, um fenômeno que se observa em vários mercados, e que tem a ver com o estado atual das coisas: uma necessidade em entender o que se passa no mundo em meio ao caos em que vivemos", aponta André Conti, editor da Todavia.
           Mesmo no maior festival literário do país, a Flip, a ficção parece ter uma importância menor - com os debates focados mais no aspecto político do que criativo. Fernanda Diamant, curadora da edição deste ano, discorda: “Sempre achei a programação equilibrada nesse sentido. E acho que muito da não ficção tem valor literário, como é o caso de Euclides da Cunha. Este ano a programação tem 15 autores de ficção, dois de crítica literária, além de vários multiartistas.” Diamant também não desassocia o ato artístico do político: “Acho que atualmente no Brasil, simplesmente trabalhar com cultura e arte já é inevitavelmente um ato político porque é contrário às ‘diretrizes’ ideológicas que estamos testemunhando no atual governo.”
André Conti complementa: "O fato de um livro se passar durante as passeatas de 2013 ou de tentar dar conta dos nossos tempos atuais, por exemplo, não significa que ele será bom ou que trará qualquer reflexão surpreendente sobre o Brasil. Ao mesmo tempo, um romance histórico aparentemente descolado da realidade pode trazer um comentário político sobre o Brasil muito mais poderoso do que um romance-tese sobre a autodeterminação dos povos. O que é dizer: todo romance, queira ou não, está cravado no seu tempo. Todo romance, por ação direta do autor, olhar de canto ou plena negação, diz algo sobre o seu tempo e sobre a visão de mundo do autor. Então não há necessidade de a ficção refletir o momento atual: ela já vai fazer isso. Isso posto, a ficção é sim um campo importante de recriação das tensões contemporâneas e, num momento sombrio como o que vivemos, um livro de ficção pode ser fundamental para que essas tensões venham à tona.”
Se os autores têm sentido a necessidade de tratar da crise, como a crise vem tratando os autores? Como esse momento de instabilidade política e econômica se reflete não apenas na produção, mas na publicação, nos investimentos?


Lúcia Riff

“Acho que temos sim uma crise de mercado que está atrapalhando momentaneamente os autores (não se pode negar)”, aponta a agente literária Lúcia Riff. “As grandes Editoras encolheram suas programações a um mínimo e os cortes acabaram afetando, mais diretamente, as obras de ficção. Mas isto não quer dizer que haja uma crise na ficção uma vez que os autores de ficção continuam escrevendo bastante, e muito bem, continuam publicando, o público continua lendo. Novas Editoras continuam surgindo e novas formas de leitura também (vide o grande sucesso dos audiobooks).”
            Uma Editora que vem ganhando espaço e relevância no mercado da ficção nacional é a paulistana Nós, de Simone Paulino, que chegou a trabalhar de empregada doméstica na adolescência e hoje entende como ninguém o papel transformador da cultura. “O catálogo da Nós é composto por 90% de ficção. Temos pouquíssimos títulos de não-ficção. E criamos um linha de poesia. Estamos remando contra a maré por uma crença quase insana na literatura como instrumento de transformação existencial e social. Fundei a editora baseada na premissa do professor Antonio Candido, no célebre ensaio ‘O Direito à Literatura’. Ela está e sempre estará em primeiro lugar na minha vida e na minha editora. Precisamos de ficção para aguentar a realidade”, diz Paulino. Ela reforça o papel político do escritor:


Paulino. 

            “Não consigo compreender um artista que não reflita o seu tempo. Sei que temos grandes autores que passaram ao largo da política - ou acharam que passaram - como o Borges. Mas penso que a construção ou a desconstrução de um país e de uma sociedade está vivamente ligada à construção da literatura e das artes em geral. A mim, como editora, não interessa a alienação. O que me interessa, inclusive como leitora, é a vida presente, o homem presente, para usar uma expressão do Drummmond. E isso inclui a política. Aquela máxima de que o pessoal é político e o político é pessoal nunca fez tanto sentido. E um escritor que não perceba a sua implicação histórica não me interessa muito.”
 “A ficção atual é a mais vigorosa de que eu tenho notícia”, continua Marcelino Freire. “Há quem viva lamentando o fechamento da Livraria Cultura e só discute sobre prêmios literários. Enquanto isto, muitos poetas e prosadores têm surgido, vendendo seus próprios livros, circulando pelo Brasil, soltando o verbo. Já há, faz tempo, uma geração sem livrarias. Eu chamo de ‘Geração da Maquininha’. Eles são a própria livraria. Puxam a maquininha e vendem os exemplares ali, na hora, sem atravessadores. As grandes editoras querem saber o segredo desta ‘circulação’, desta literatura que nunca dependeu das grandes editoras e das estantes altas das livrarias. Na crise, tem quem entre em crise. Há autores e autoras que sempre viveram na crise, por isso se reinventam. E reinventam a literatura brasileira.”
Um exemplo vigoroso dessa nova geração que surge às margens da crise é Marlon Souza, 26 anos, negro e homossexual de São João de Meriti (RJ). Filho de mãe solteira e criado pela avó, cresceu numa família de não-leitores e hoje é uma figura atuante na cena literária da Baixada Fluminense. Aos 22 anos publicou seu primeiro romance de forma independente – “Às Vezes”, sobre um jovem infectado com HIV -, e hoje tem mais dois romances, além de participar de diversas antologias. Marlon também organiza o LiteraCaixias, evento literário que se iniciou em Duque de Caixas e se desdobrou por outras cidade do Rio e São Paulo, e edita a revista “Publiquei”, focada em autores independentes. Atualmente prepara um romance para a editora Malê, especializada em autores negros.


Marlon. 

            “Para mim é incrível ver escritores negros e/ou LGBT’s conseguindo acender profissionalmente, suas narrativas ganhando espaço. Algo que não tive na minha adolescência e estou tento oportunidade de experimentar hoje. O acesso está mais fácil, o debate está em maior evidência e apesar de ainda existir um forte preconceito e esquecimento da vasta produção feita por esses grupos, acredito que esteja havendo uma crescente significativa”, diz Marlon.
Porém, se o autor de ficção adulta se vê impelido a debater sobre a realidade político-social do momento, autores de literatura infanto-juvenil sentem uma pressão contrária. “Não me preocupo tanto com crise econômica”, acrescenta Lúcia Riff. “O que me assusta é essa crise ideológica, autor de livro infantil que tem medo de abordar certos assuntos por causa da patrulha, porque depois o livro não vai ser adotado em escolas.”
Simone Paulino completa: “Literatura é resistência. Sempre foi. Sempre será. A ficção escrita por mulheres nunca foi tão pulsante. Nunca as mulheres escreveram tanto e tão bem. E nunca foram tão lidas! Como disse o Fernando Haddad dia desses: Os livros sempre vencem. Eu preciso acreditar nisso para continuar existindo, como leitora, como escritora, como editora.”


                                                              *

Gosto muito da visão de todos (especialmente da honestidade da Lúcia Riff, que por acaso também é minha agente ;) , mas não concordo totalmente. Eu, como partidário do existencialismo (ainda que existencialismo bizarro), sempre me interessei mais pelas narrativas com questões atemporais-universais. Então o "não consigo compreender um artista que não reflita o seu tempo", da Simone Paulino não faz sentido para mim. Eu consigo. Longe de pertencer a uma "elite" - eu sofro para pagar as contas; e estou longe até de pertencer a uma elite intelectual - eu trabalho em casa, não uso transporte público, mal saio de casa, então a minha visão da realidade atual é muito parcial, e não é isso que me interessa registrar em livro (talvez seja o que me interessa registrar neste blog, e por isso ando postando tão pouco). 


Para mim, o livro-romance sempre existiu para tratar de questões subjetivas, intrínsecas ao ser humano (a utopia da paternidade de "Neve Negra", a crise de meia idade de BIOFOBIA, o limite do individualismo de "Feriado de Mim Mesmo", e por aí vai.). São questões elitistas? Talvez. Talvez as grandes questões existenciais sejam elitistas, reflexões de gente entediada que não tem de pegar ônibus... (Talvez por isso eu tenha me tornado um autor irrelevante...)

Marcelino também sempre levanta essa bandeira da "literatura-maquininha", dos autores que estão aí, declamando seus poemas, vendendo seus livros. Mas esse povo que está toda noite bebendo em sarau, não está sentado em casa lendo, escrevendo; é um povo que junta um punhado de frases "lacradoras" e lança como livro. Tem seu valor, mas é triste de se exaltar como única literatura possível hoje em dia. Esse povo não tem fôlego nem para duzentas páginas. E como ficam os introspectivos, os esquizos e reclusos, que sempre tiveram na literatura seu abrigo? Só o showman pode ser hoje escritor? As colocações de Marcelino me fazem lembrar da frase do Temer: "Não pense em crise, trabalhe"...

(Não por acaso, os autores favoritos da minha geração são dos mais retirados, e que lançam romances consistentes a cada punhado de anos: Daniel Galera, Ana Paula Maia, Antonio Xerxenesky.)

Para encerrar, o professor da Sorbonne Leonardo Tonus também está trazendo muitas dessas questões em seu blog. Eu fui o primeiro a participar, semana passada, aqui: "O Desafio é a Liberdade"

NESTE SÁBADO!