02/03/2020

INFERNO AQUÁTICO



No lago Sevan, Armênia, em 2015. 

Saiu ontem na Folha uma página inteira com um trecho do meu novo livro, Fé no Inferno, que lanço mês que vem, pela Companhia das Letras. 

O romance é narrado em dois tempos intercalados: o Brasil de hoje e a Armênia histórica durante a Primeira Guerra - num paralelo de minorias perseguidas, religião dominando o Estado, nativos expulsos de suas próprias terras. 

Iniciei os trabalhos em 2015, depois de minha viagem à Armênia, seguindo pela leitura de dezenas de sobreviventes do genocídio. 

Segue o trecho (que tem aquela pegada onírica-etérea de que tanto gosto):  


A fome não nos assolava todos os dias. A fome assolava a mim e meu irmão dia sim, dia não, porque dia-sim-dia-não comíamos. E embora o que comíamos não fosse o suficiente para matá-la, dia-sim-dia-não sentíamos mais era sede, dores nos pés, desânimo e tristeza por nossa família massacrada, que nos deixava sem apetite.
Num dia particularmente claro, ensolarado, em que não sentíamos frio e que a natureza teimava, nos importunava, nos cutucava para que abríssemos um sorriso, eu e meu irmão avistamos um açude.
Um açude é um lago feito pelo homem, um represamento com algum propósito de irrigação, abastecimento; porém, já havíamos percebido que, com o plano maligno dos turcos de eliminar os armênios, parecia que todos os outros planejamentos haviam sido deixados de lado. Assim como eles exterminavam cidadãos produtivos de seu próprio Império, que tanto poderiam ter contribuído em tempos de guerra, eles deixavam oficinas, plantações, açudes abandonados, improdutivos.
Num dia quente de sol, com a fome posta de lado, nos deixamos levar pelo calor, pela sede, e até despertamos certo ânimo por poder mergulhar num lago de águas cristalinas, esquecido pelo homem.
Despindo-nos de nossas roupas, de nossos trapos, eu e meu irmão descascando-nos em corrida, saltando entre a vegetação, como se deixássemos para trás nossa civilidade, incivilidade, nossa cultura, a morte de nossa cultura, nossos costumes e fantasias, assumindo-nos como filhos selvagens da terra, de volta ao Éden, mergulhamos no açude.
Apenas um segundo antes pensei, esqueci de pensar, me ocorreu que o mergulho seria ácido e escaldante, a água quente e corrosiva. Mergulharíamos nus como meninos no líquido transparente para nos desprovermos do resto de nossa humanidade. A pele se desprendendo da carne, a carne se desprendendo do osso, os ossos insistindo pela gravidade, um esqueleto sorrindo. A alma ficaria lá, diluída, sem nem uma direção a seguir, uma superfície a subir, um deus a pescar.
Mas não.
O contato com a água foi fresco e revigorante, vigoroso e refrescante; gelada, nos despertava para a vida, comprimia a pele em nosso corpo, embalava-nos em juventude, mergulhávamos fundo para vir novamente à tona. Eu e meu irmão nos avistávamos na superfície, ríamos, e voltávamos a mergulhar, como se houvesse uma resposta lá embaixo, como se houvesse um deus. E como, se eu mergulhasse fundo o suficiente, pudesse emergir do outro lado, onde o ar não fosse mais vital, onde um ser não precisasse mais respirar, e onde aqueles que deixaram de respirar ainda pudessem ser.
 Só encontrei algas.
Elas me acenavam e envolviam, de toda forma, elas me saudavam. Eu passeava meus dedos pelo fundo do açude, minhas pernas roçando as plantas, as algas me roçando de volta; queria permanecer lá, onde era bem vindo; sem outros seres respirantes, onde eu era deus; deus e seu irmão, vindos de cima, esforçando-se ao máximo para permanecerem lá com os afogados, os esquecidos, as algas e os peixes diminutos. Eu passeava minhas mãos por tudo, como se os abençoasse, como se pedisse permissão para permanecer. Pensava: e se deus também apenas passa por nós, pedindo uma oportunidade de respirar aqui em baixo? Lá de cima, tão distante, bem intencionado, mas sem um aparelho respiratório. Seria o oxigênio que nos condenou?
Meus devaneios estavam se tornando perigosos. Eu precisava emergir. E numa nova busca por ar percebi que as algas insistiam, me envolviam, me queriam embaixo d´água.
Logo senti minhas pernas e braços presos, enroscados, uma vida subaquática insistindo que eu permanecesse ali. Puxei, me debati, os fiéis úmidos não queriam me deixar ir. Puxei com mais força, plantei meus pés no solo, tentei ganhar impulso para emergir a uma terra que era minha, que não me queria, um lugar onde eu não deveria estar.
Fui subindo com um enorme peso em mim. Cachos grossos se envolviam em meus braços, meus pés, me insistiam para ficar. Eu dava braçadas, pernadas, tentava me livrar daquele fardo, para voltar a respirar. Pode ter demorado horas, segundos, instantes, demorou para eu recuperar o fôlego, e ainda pesado nadar até a margem.
Chegando lá, eu só queria respirar.
Enquanto recuperava meu fôlego, meu irmão continuava nadando, subindo e descendo, comemorando, como se o Sultão, tivesse sido afogado lá mesmo. Eu queria chamá-lo, alertá-lo do perigo, dizer que eu mesmo quase havia me afogado, mas eu não tinha forças.
Às margens do açude, eu tentava me soltar das folhas e algas que haviam me prendido. E logo percebia o que eram: tranças, cachos, mechas de cabelo. Era esse o propósito do açude. Para isso ele ainda tinha serventia. Meus pés estavam amarrados pelos cabelos dos armênios afogados naquelas águas. 

Aqui: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/leia-trecho-do-novo-romance-de-santiago-nazarian.shtml?fbclid=IwAR3ieq98e_uEkKHQlalvBMdrs0vP0vOtNxhIDHOTJSI-ERYWDRt2-_keiDs

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