Entreguei há quinze dias a tradução de “A Troco de
Nada”, a “polêmica” autobiografia do Woody Allen, que sairá em breve pela
Editora Globo.
Foi um trabalho que literalmente salvou minha quarentena.
Não só pela grana (que foi a média do mercado de sempre), mas por manter a cabeça
ocupada, focada, na tradução em si e nas pesquisas.
Sempre escutei muita gente dizendo que não
conseguiria trabalhar de casa, porque não tinha disciplina. Acho que essas
pessoas estão tendo de se virar agora. Para mim sempre foi o contrário, sempre
gostei de trabalhar de forma “independente”, fazer meus próprios horários e –
como já disse várias vezes – JAMAIS furei um prazo.
Quando eu trabalhava em agência de publicidade
sentia era um enorme desperdício de tempo. Muitas vezes eu ficava nove... doze
horas na agência, quando o trabalho de fato eu poderia realizar em... três, ou
menos. Muito era tempo perdido marcando ponto, esperando o trabalho chegar.
O ruim de trabalhar de casa, de freela, é a
incerteza. Nunca se sabe como vai ser o próximo mês, nunca há um fixo; e a
gente se força a trabalhar mais, para ganhar mais. Eu trabalho praticamente
todos os finais de semana (sábado, ao menos), revisando as traduções que fiz na
semana. Poderia trabalhar menos, mas daí ganharia menos... e já não ganho
muito.
(“Quem tem a si mesmo como patrão tem como
empregado um escravo”, é um lema de mim mesmo.)
Voltando ao Woody, além da grana, além do foco,
foi uma tradução muito prazerosa, é claro. O cara é genial (ególatra, de moral
duvidosa, mas genial), muito engraçado e traz uma riqueza de histórias e
experiências impressionantes.
O livro tem seus problemas; dá a impressão de que
ele não deixou ninguém editar, porque muita coisa se repete, se alonga, mas
isso também contribui com o caráter oral do
livro, de fluxo de pensamento, que talvez seja reforçado pelo fato de ter sido
escrito à máquina (ele diz que não usa computador), o que dificulta a
edição/revisão do próprio autor.
Entrando na questão ética, em nenhum momento me
senti “culpado” em estar dando voz (em português) a um homem acusado de abuso
de menores. Primeiro porque acho que ele tem direito de contar a versão dele e
as pessoas têm direito de saber. Segundo, porque lendo o livro fica claro que
ele foi apenas acusado, nunca chegou
nem a ser julgado, não há provas, as investigações concluíram que nada
aconteceu; então, no mínimo, temos de dar a ele o benefício da dúvida.
Para quem se interessou pelo livro justamente por
isso, vai ficar satisfeito. Ele começa contando sobre a infância, sobre os
filmes, mas quando entra no capítulo sobre a relação com Mia Farrow, não poupa nada. São dezenas e dezenas de páginas sobre isso. Até comentei com a editora: “Estou
há uma semana traduzindo na lavanderia; Woody começou com a roupa suja e não
para mais.”
Aliás, esse foi outro aspecto delicioso da
tradução: a editora da Globo, Amanda Orlando, é uma querida, e eu recheei a
tradução de comentários para ela, observações sobre o texto, coisa que não faço
normalmente, mas acho que era uma forma de sentir que estava trabalhando
acompanhado, que não estava tão sozinho. Nessa quarentena, fez diferença. (Meus comentários,
obviamente, não vão entrar na edição final.)
Agora, para quem é fã dos filmes, o livro também
tem histórias deliciosas de bastidores, de criação. Ele é um apaixonado por cinema (e um grande "name-dropper") e conta vários episódios glamourosos com celebridades, com outros cineastas. Numa passagem ele conta de um restaurante em que ia TODA noite em Nova York, onde encontrava Fellini, Polanski, Tennessee Williams (eu fiquei pensando que se eu fosse escrever minha biografia falaria isso da... LOCA, em São Paulo. Conheci tantos cineastas, atores, músicos e escritores da minha geração por lá...).
Nem todos os filmes são
vistos em profundidade (“Tiros na Broadway”, que eu adoro, por exemplo, é
mencionado bem por cima), com muitos ele é bem crítico (ou impiedoso), mas no
final forma um retrato riquíssimo da indústria cinematográfica norte-americana “semi-independente”
, nos últimos cinquenta anos.
Não sou dos maiores fãs, confesso. Gosto de um
filme ou de outro (“Annie Hall”, “Tiros na Broadway”, “Manhattan”...). Também
estou longe de ser um especialista na obra dele. Mas acho que, modéstia à
parte, o que a tradução mais precisava eu tenho: um repertório vasto de
diversos assuntos e muita experiência em tradução, para poder pesquisar
referências obscuras ou jogos de palavras, no curto prazo.
Tradução entregue, felizmente já engatei em outra.
Pelo menos os próximos meses estão salvos... embora ninguém possa ter certeza
disso hoje em dia.