Eu e ela, há uns vinte anos. |
Ontem se foi a última dos meus avós, vítima de covid.
Não vou me esquecer de chegar na casa dela, sempre
aquele cheiro de canela no ar, ela na frente do fogão, a panela borbulhando, o
avental sujo de chocolate, sempre preparando algo...
Não vou me esquecer porque isso nunca aconteceu.
Essa imagem de avó eu não tive. “Sua avó não sabe nem pegar uma maçã da
geladeira”, foi uma frase ótima da minha mãe, que até usei no livro novo. E não
era exagero. Se minha avó queria uma maçã, ela tocava um sininho e alguma
empregada trazia numa porcelana, limpa e cortada. Nunca trabalhou. Nunca
cozinhou. Mas não deixou de receber os netos com guloseimas – compradas na Ofner
e devidamente servidas à francesa pelas empregadas.
“Ninguém pode dizer que sou racista, porque todos
os meus criados são de cor”, é uma frase real dela que escutei e nunca esqueci.
Minha avó tinha valores estranhos... Quando postei no Facebook que ela havia sido
hospitalizada, recebi dezenas de mensagens carinhosas, de gente que
provavelmente a enxergava com sua própria imagem de avó, ou como um clichê de
avó, como uma santa.
Talvez ela pudesse ter sido outra coisa, seguido outro rumo, se não tivesse tido de casar tão cedo, dentro da colônia armênia, se pudesse ter continuado a estudar, viajar, as coisas que ela gostava. Mas daí eu não estaria aqui...
A verdade é que ela já estava havia muitos anos debilitada, nada lúcida, tinha acabado de fazer 94 anos, morando numa casa de repouso. Então estava na hora, apesar de ser um momento tão complicado...
A verdade é que ela já estava havia muitos anos debilitada, nada lúcida, tinha acabado de fazer 94 anos, morando numa casa de repouso. Então estava na hora, apesar de ser um momento tão complicado...
Eu gostava dela, como ela gostava de mim. Fui
dos netos favoritos – e era generosa nos presentes, de viagens à Disney a
intercâmbio na Inglaterra, ou o "Castelo de Grayskull". Durante a infância, sua casa no Jardim Europa era recheada de brinquedos para nós, e antes de eu aprender a ler, ela me lia as revistinhas da Marvel compradas na banca de esquina, da rua Groenlândia, Hulk principalmente. Ela era uma avó amorosa, mas não como as pessoas visualizam. Desde criança eu nunca estava totalmente à vontade, por ela ser tão elitista. Na minha adolescência e começo da idade adulta, saíamos para jantar nos melhores
restaurantes de São Paulo – meu lado burguês casava com o dela; o gosto pela gastronomia, as viagens, o cinema – porém os conflitos de valores, o moralismo, foram pesando cada
vez mais pra mim. Foi ficando difícil conviver. Ela foi a única pessoa da
família com quem nunca pude falar da minha homossexualidade.
Foi a única imagem de avó que tive, afinal.
Minha avó paterna morreu há uns dez anos, mas nunca convivemos – ela nunca deu bola para os “netos bastardos armênios”, embora (ou talvez porque) a
família da minha mãe tivesse mais grana do que a dela. Me impressionou muito ler o
livro do (meu primo) Rafael Cortez, na forma como ele narra essa minha outra
avó (paterna), Helena, porque para mim ela nunca esteve presente.
Mas a avó "armênia", Zília Nazarian (de solteira, Gasparian, filha de Gaspar Gasparian, irmã de Fernando Gasparian, já falecido, fundador da Livraria Argumento e editor da Paz e Terra), mãe de minha mãe, deixará saudades. Ficou dez dias internada no Einstein, com o melhor tratamento que poderia ter. Triste que não podia receber visitas, por causa do covid, morreu sozinha, minha mãe querendo ir lá...
Não tivemos velório, mas houve um rápido enterro no cemitério da Cardeal. Foi bom para encontrar a família - a reunião possível, todos de máscara, sem ninguém se abraçar -, tenho tios e primos queridos. Uma tia inclusive não foi porque também está com covid. E foi a primeira oportunidade que tive de caminhar pelas ruas em muitas, muitas semanas. Ao cemitério e de volta. A gente sente falta de coisas tão básicas...
E é irônico que minha avó termine assim, bem quando lanço meu livro armênio, tão baseado nela (e no meu avô), passado na antiga casa deles ("a última sobrevivente da Avenida Europa", que hoje é uma concessionária Mercedes Benz), num livro que fala tanto sobre velhice, sobrevivência e resistência.
Não tivemos velório, mas houve um rápido enterro no cemitério da Cardeal. Foi bom para encontrar a família - a reunião possível, todos de máscara, sem ninguém se abraçar -, tenho tios e primos queridos. Uma tia inclusive não foi porque também está com covid. E foi a primeira oportunidade que tive de caminhar pelas ruas em muitas, muitas semanas. Ao cemitério e de volta. A gente sente falta de coisas tão básicas...
E é irônico que minha avó termine assim, bem quando lanço meu livro armênio, tão baseado nela (e no meu avô), passado na antiga casa deles ("a última sobrevivente da Avenida Europa", que hoje é uma concessionária Mercedes Benz), num livro que fala tanto sobre velhice, sobrevivência e resistência.
A sensação que fica é aquela: a fila existencial
anda. Já se foram todos os meus avós. Meus dois pais ainda estão vivos. Mas os
tempos não são nada promissores.