27/06/2020

A ZONA DAS PRATELEIRAS


Em casa, esta semana. 

He said he had a horrible house. I looked in and learned to shut my mouth...

Nessa temporada de quarentena já fiz post sobre meu corpo, minhas tatuagens, meu pau... (ou quase), faltava sobre minha casa...

A zona das prateleiras. 

O cenário de fundo de tantas fotos, algumas lives, tem causado horror e fascinação de alguns. "Queria ir aí arrumar sua biblioteca", bradam os mais convencionais. E a questão é essa, eles poderiam vir aqui arrumar minha vida, se não fossem convencionais...

Nesse período de isolamento temos visto a sala/escritório/quarto de tanta gente - Guga Characra tem uma biblioteca interessante sobre oriente médio; e tanto se zombou da "biblioteca" do Paulo Guedes" - a minha se tornou chacota pelo excesso.

"Você tem toc ou rinite? Se tiver ambos, você MORRE ao entrar na minha casa", já falei de brincadeira (mas não muito) para tantos dates. Quando fiquei solteiro novamente, talvez influenciado pela cultura de "mercado de luxo" em que o falecido estava inserido, tinha certa vergonha do meu apartamento, da zona, confesso, mas logo deixei isso de lado. Vi que era um ótimo termômetro.

Não é mais bonito do que um móvel reto?
O problema com minha casa... é que é minha casa. E tem a questão de ser casa de escritor, recebo muito livro, não dou conta, mas não quero me desfazer, não tenho onde guardar. Soma-se a isso o fato de eu ter uma coelha que rói tudo o que está à altura do chão, então esse ou é um espaço que eu perco ou é um espaço que fica deteriorado por ela.


Tem menino que fica horrorizado, tem menino que fica chocado de maneira positiva, tem gente que nem liga (como seria comigo) pras montanhas de livros, de CDs, DVDs, para os móveis tortos, paredes rachadas, a desorganização geral. Entendo a necessidade de limpeza, higiene, é claro, agora ORGANIZAÇÃO pra mim é algo que já esbarra no supérfluo... ou fútil.

Prateleiras retas para quê?

(Durante as pesquisas para meu livro novo, fui à casa de um velho professor armênio, que parecia uma caverna de livros - fiquei tão feliz, porque vi que eu ainda faltava algumas décadas para ficar como ele.)


Sinceramente, quando vejo um escritor com uma sala organizadinha, de livrinhos todos encaixados, desconfio. Pior ainda é sala clean, minimalista. Já visitei amigos que mantinham (meia dúzia de) livros dentro do armário. Gente organizada me passa a pior das impressões e eu já percebo que jamais poderia namorar um ser desses...

Mas ainda queria um garotinho de cueca com pompom passando espanador aqui em casa...

Eu tive uma faxineira por muitos anos, trazida da casa da minha mãe - ela que levei para conhecer o mar pela primeira vez, num post de dez anos atrás -, mas nunca fiquei confortável com essa relação. Por mais esnobe que eu seja, eu não gosto de ser servido, me incomoda (e acho que tem mais a ver com meu espírito independente do que com qualquer ideal humanista - se eu mesmo puder fazer, eu prefiro do que alguém faça por mim).

Voltando à zona, isso se restringe ao cenário, como eu já disse, não exatamente à minha vida. Sou absurdamente metódico com trabalho, prazos, até relacionamentos. São departamentos diferentes. Mas para mim simplesmente não faz diferença se uma prateleira está reta ou torta.

É o "anti-toc", se preferir.

Mas não tenho apego pela bagunça. Se alguém quiser realmente vir aqui dar um jeito nas prateleiras (e na minha vida), pode vir. Mas não pode ter toc, nem rinite, e tem que ficar bem só de cuequinha com pompom e espanador.







24/06/2020

FÉ NA VENDA




CHEGOU aqui a primeira remessa de livros que comprei para revender autografado. Fica o mesmo preço de capa - R$60 (já com frete). Infelizmente, como falei, não tenho cota ainda (e estou pagando mais de R$40 por livro), então não tenho como fazer mais barato ou enviar cortesia nem para amigos-família-imprensa, senão eu quebro. Mas quem quiser comprar comigo é só mandar um email (santiagonazarian(arroba)gmail.com) que passo os dados.

O livro tá bonitão, ótimo acabamento, e são 376 páginas. 

Esse deverá ser o equivalente à noite de autógrafos, já que não podemos fazer eventos. Conto com a força de todos, inclusive na divulgação (e os amigos queridos sabem como sempre divulgo os lançamentos deles). Não tá nada fácil de imprensa...

Quem já leu (e gostou) melhor do que enviar mensagem para mim é postar nas redes - ajuda muito mais. É o que eu faço. (Mensagens privadas eu não divulgo. E quem não gostou não entendeu nada :P)

O livro físico e o Ebook também estão sendo vendidos no site da Amazon, Americanas, Submarino, Cultura, etc. (Por enquanto, nada em livrarias físicas).

Vai novamente o release para atiçar (ou desmotivar):

Estamos numa época de minorias perseguidas, de nativos expulsos de suas próprias terras, da religião majoritária se impondo sobre um povo. Estamos no Brasil de 2017, às vésperas de uma eleição reveladora; e estamos em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial. Quem une essas duas épocas é Cláudio, um jovem cuidador de idosos que vai trabalhar para Domingos, um senhor armênio, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Como homossexual e neto de indígenas, Cláudio sabe bem o que é ser minoria, e na convivência com Domingos conhece uma história que remonta a mais de um século: o genocídio armênio perpetrado pelos turcos. A partir da leitura de um livro de memórias, Cláudio começa a suspeitar de que possa estar diante de um dos últimos sobreviventes de um dos maiores massacres do século XX, e sua responsabilidade como cuidador é mantê-lo vivo. Com Fé no Inferno, Nazarian se firma como um exímio contador de histórias, mestre indiscutível do ritmo e da condução. Com duas linhas narrativas que se cruzam e se entrelaçam, e mesclando pesquisa histórica, folclore armênio e uma observação mordaz do Brasil contemporâneo, este romance mantém o leitor emocionado e absolutamente envolvido até seu desfecho surpreendente.

Valeu mesmo pelo carinho e interesse de tantos :*

#fénoinferno #companhiadasletras
 

19/06/2020

FÉ NO LANÇAMENTO



TEMOS FÉ EM PAPEL!

Recebi esta semana meu primeiro exemplar físico de “Fé no Inferno”, meu novo romance, publicado pela Companhia das Letras. Tem sido um parto longo e problemático.

Entre o começo de pesquisa, escrita, entrega para editora, reescrita e revisões foram 5 anos, de 2015 para cá. Estava prestes a ser lançado em abril, quando tivemos a pandemia. A noite de autógrafos estava marcada para 9 de maio, às vésperas do meu aniversário, num bar de um amigo aqui em São Paulo, incluindo um debate comigo e um historiador especialista no genocídio armênio.  Não deu para fazer nada.

A Editora congelou num primeiro momento. Depois resolveu começar a lançar ebooks, para quem quisesse ler na quarentena. Finalmente optou por um excelente esquema de publicação “on demand”, que estão usando agora. Sinceramente, eu tinha dúvidas quanto ao resultado – mas o livro chegou em três dias úteis no (alto) padrão usual da editora: bom papel, boa impressão – já tive publicações mais feias, feitas no esquema tradicional, em outras editoras.

Bela edição. 

Pode ser uma nova alternativa? A mim me parece. Imprimir só o que será vendido me parece não só esperto como “ecologicamente correto”.  Conversei um pouco com o Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia, que disse que estão já trabalhando ocasionalmente com esse modelo há um ano e meio: 

Em tempos de varejo físico fechado, ou quase integralmente fechado, como os que correm, eu diria que são poucas as desvantagens. E vale dizer que hoje há maneiras mesmo de atender ao livreiro exclusivamente físico. A principal vantagem, do ponto de vista da editora, é a possibilidade de manter o catálogo – muito vasto, em nosso caso – ativo, o que antes era um grande desafio, pelas limitações, naturais em toda empresa, de recursos para atender a demanda de reimpressões.

Já quem alardeia o fim do livro em papel, ou ebook como o futuro do livro, não parece ser um grande leitor. Os bibliófilos todos parecem preferir o livro impresso – e se bibliófilos são hoje uma parcela ínfima, são esses que consomem literatura contemporânea brasileira.

Para mim, o principal problema do “POD” (ou “print on demand”) é que dificulta a exposição do livro em livraria, chega menos ao leitor casual; ainda que Otávio diga que o livro PODE ser comercializado em livrarias, a grande maioria opera em consignação - e esse também é um modelo completamente absurdo, com grandes redes pegando tudo consignado e devendo milhões às editoras.

Perguntei a ele também se as livrarias estavam retaliando esse novo modelo: 

Por ora não houve retaliação, não. Alguma reclamação aqui e ali, mas de modo geral há uma compreensão de que é um processo que veio para ficar. E, como disse, é possível atender o livreiro físico, observadas algumas limitações.

Voltando ao MEU lançamento, parece que ele será apenas assim – se nem carnaval devemos ter ano que vem, quem dirá noite de autógrafos -, então a editora venderá pelos grandes sites e eu mesmo estou comprando alguns livros para revender autografado.  Consegui um desconto, que me permitirá revender o livro pelo preço de capa, R$60 já com o frete (e autógrafo). Quando receber os livros aqui, aviso nas redes sobre a venda – provavelmente no final da próxima semana.

(Quando avisei do adiamento do livro, povo sugeriu para eu lançar em ebook, quando saiu em ebook o povo disse que ia esperar para comprar em papel, quando saiu em papel o povo disse que queria autografado comigo. AGORA VOU VENDER AUTOGRAFADO, ENTÃO VÊ SE COMPRA, CACETE!)

E para os amigos, familiares e “influencers”, realmente eu não tenho NENHUM livro para dar – por enquanto o único em papel que tenho aqui em casa foi porque eu comprei, preço cheio (R$60 com frete) nas Americanas, só para ter um. Por contrato eu teria uma cota de 30 livros, mas só devo receber isso quando a editora fizer uma edição regular...

E para isso acontecer, toda ajuda/divulgação é bem vinda. Povo acha que porque a gente está na Companhia das Letras está com o jogo ganho, mas não é nada assim, ainda mais eu, que estou no “Lado B” da editora (para não dizer “segunda divisão”). Editoras pequenas muitas vezes conseguem fazer mais pelo autor, porque têm menos lançamentos, menos autores; e o momento atual está terrível: povo sem grana, livrarias fechadas, a mídia só focada na pandemia...

Mas enfim, temos livro, tá lindo, e o conteúdo melhor ainda. Coloco novamente o release:

Estamos numa época de minorias perseguidas, de nativos expulsos de suas próprias terras, da religião majoritária se impondo sobre um povo. Estamos no Brasil de 2017, às vésperas de uma eleição reveladora; e estamos em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial. Quem une essas duas épocas é Cláudio, um jovem cuidador de idosos que vai trabalhar para Domingos, um senhor armênio, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Como homossexual e neto de indígenas, Cláudio sabe bem o que é ser minoria, e na convivência com Domingos conhece uma história que remonta a mais de um século: o genocídio armênio perpetrado pelos turcos. A partir da leitura de um livro de memórias, Cláudio começa a suspeitar de que possa estar diante de um dos últimos sobreviventes de um dos maiores massacres do século XX, e sua responsabilidade como cuidador é mantê-lo vivo. Com Fé no Inferno, Nazarian se firma como um exímio contador de histórias, mestre indiscutível do ritmo e da condução. Com duas linhas narrativas que se cruzam e se entrelaçam, e mesclando pesquisa histórica, folclore armênio e uma observação mordaz do Brasil contemporâneo, este romance mantém o leitor emocionado e absolutamente envolvido até seu desfecho surpreendente.

(Para quem já quiser comprar em papel ou ebook, o site da Companhia dá as opções: https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14687

Semana passada dei uma entrevista ótima na CBN sobre o livro:


E um novo (e ótimo) youtuber fez uma crítica excelente (por enquanto, a única que tive):




12/06/2020

THANKS, WOODY




Entreguei há quinze dias a tradução de “A Troco de Nada”, a “polêmica” autobiografia do Woody Allen, que sairá em breve pela Editora Globo.

Foi um trabalho que literalmente salvou minha quarentena. Não só pela grana (que foi a média do mercado de sempre), mas por manter a cabeça ocupada, focada, na tradução em si e nas pesquisas.

Sempre escutei muita gente dizendo que não conseguiria trabalhar de casa, porque não tinha disciplina. Acho que essas pessoas estão tendo de se virar agora. Para mim sempre foi o contrário, sempre gostei de trabalhar de forma “independente”, fazer meus próprios horários e – como já disse várias vezes – JAMAIS furei um prazo.

Quando eu trabalhava em agência de publicidade sentia era um enorme desperdício de tempo. Muitas vezes eu ficava nove... doze horas na agência, quando o trabalho de fato eu poderia realizar em... três, ou menos. Muito era tempo perdido marcando ponto, esperando o trabalho chegar.

O ruim de trabalhar de casa, de freela, é a incerteza. Nunca se sabe como vai ser o próximo mês, nunca há um fixo; e a gente se força a trabalhar mais, para ganhar mais. Eu trabalho praticamente todos os finais de semana (sábado, ao menos), revisando as traduções que fiz na semana. Poderia trabalhar menos, mas daí ganharia menos... e já não ganho muito.

(“Quem tem a si mesmo como patrão tem como empregado um escravo”, é um lema de mim mesmo.)

Voltando ao Woody, além da grana, além do foco, foi uma tradução muito prazerosa, é claro. O cara é genial (ególatra, de moral duvidosa, mas genial), muito engraçado e traz uma riqueza de histórias e experiências impressionantes.

O livro tem seus problemas; dá a impressão de que ele não deixou ninguém editar, porque muita coisa se repete, se alonga, mas isso também contribui com o caráter oral do livro, de fluxo de pensamento, que talvez seja reforçado pelo fato de ter sido escrito à máquina (ele diz que não usa computador), o que dificulta a edição/revisão do próprio autor.

Entrando na questão ética, em nenhum momento me senti “culpado” em estar dando voz (em português) a um homem acusado de abuso de menores. Primeiro porque acho que ele tem direito de contar a versão dele e as pessoas têm direito de saber. Segundo, porque lendo o livro fica claro que ele foi apenas acusado, nunca chegou nem a ser julgado, não há provas, as investigações concluíram que nada aconteceu; então, no mínimo, temos de dar a ele o benefício da dúvida.

Para quem se interessou pelo livro justamente por isso, vai ficar satisfeito. Ele começa contando sobre a infância, sobre os filmes, mas quando entra no capítulo sobre a relação com Mia Farrow, não poupa nada. São dezenas e dezenas de páginas sobre isso. Até comentei com a editora: “Estou há uma semana traduzindo na lavanderia; Woody começou com a roupa suja e não para mais.”

Aliás, esse foi outro aspecto delicioso da tradução: a editora da Globo, Amanda Orlando, é uma querida, e eu recheei a tradução de comentários para ela, observações sobre o texto, coisa que não faço normalmente, mas acho que era uma forma de sentir que estava trabalhando acompanhado, que não estava tão sozinho. Nessa quarentena, fez diferença. (Meus comentários, obviamente, não vão entrar na edição final.)

Agora, para quem é fã dos filmes, o livro também tem histórias deliciosas de bastidores, de criação. Ele é um apaixonado por cinema (e um grande "name-dropper") e conta vários episódios glamourosos com celebridades, com outros cineastas. Numa passagem ele conta de um restaurante em que ia TODA noite em Nova York, onde encontrava Fellini, Polanski, Tennessee Williams (eu fiquei pensando que se eu fosse escrever minha biografia falaria isso da... LOCA, em São Paulo. Conheci tantos cineastas, atores, músicos e escritores da minha geração por lá...). 

Nem todos os filmes são vistos em profundidade (“Tiros na Broadway”, que eu adoro, por exemplo, é mencionado bem por cima), com muitos ele é bem crítico (ou impiedoso), mas no final forma um retrato riquíssimo da indústria cinematográfica norte-americana “semi-independente” , nos últimos cinquenta anos.

Não sou dos maiores fãs, confesso. Gosto de um filme ou de outro (“Annie Hall”, “Tiros na Broadway”, “Manhattan”...). Também estou longe de ser um especialista na obra dele. Mas acho que, modéstia à parte, o que a tradução mais precisava eu tenho: um repertório vasto de diversos assuntos e muita experiência em tradução, para poder pesquisar referências obscuras ou jogos de palavras, no curto prazo.

Tradução entregue, felizmente já engatei em outra. Pelo menos os próximos meses estão salvos... embora ninguém possa ter certeza disso hoje em dia.

06/06/2020

PRIMEIROS CAPÍTULOS



Se tem orelha vai ter livro físico... acredito. 


Toda criança merece o Inferno. É nisso em que toda criança
acredita. O xixi na cama, o furto de uma guloseima, uma desobediência
escondida, tantos pensamentos impuros. Cada passo é um
pecado para quem está aprendendo o caminhar da vida. E para
quem segue as regras divinas, o Inferno está em cada esquina.

Então ali estava o Inferno. Como eu sabia que viria. Minha
aldeia queimando. Eu descendo a montanha, como o rio, um
rio de lava vermelha, acompanhando a mim, meu irmão e nossos
vizinhos a cada passo. Não deixava de ser bonito, confesso
que era a primeira impressão que me ocorria, aquela visão de
encher os olhos. Claro que havia também medo e ansiedade,
mas esses já estavam em fermentação havia tantos dias que, naquele
momento derradeiro, não chegavam a ebulir em desespero.

A colina que eu descera tantas vezes na vida, uma vida que
nem era tanta assim, a paisagem que era tudo o que eu conhecia,
sempre em cores pastel, agora ganhava um vermelho-vivo,
vermelho-morto, bruxuleante, que nunca seria possível de outra
forma, espetáculo que nunca seria possível sem meus pecados.

Meu irmão mais velho me puxava pela mão e eu apressava o
passo, tentando olhar para trás, tentando não olhar para trás, tentando
acertar o passo, o sapato escapando de meus pés como se
quisesse ficar, o sapato não podendo mais, preferindo queimar.

Eu não preferia, mesmo que fosse uma bela vista, mas não tinha
certeza de que havia escolha — afinal, essa é outra verdade da
infância: na infância não se tem escolha. Talvez eu mesmo já
estivesse queimando, as costas ardendo. O Inferno provavelmente
era isso. Eu virava a cabeça para trás e pensava: o Inferno é tão
bonito…

“Estou cansado”, “quero fazer xixi”, “meus pés estão doendo”,
seriam comentários que eu faria em qualquer outro dia, naquele
mesmo cenário. Mas naquele contexto eu me esforçava
para manter tudo sob controle dentro de mim, aproveitando
apenas a beleza do momento.

As chamas dançando, sublinhando o contorno das casas. A
fumaça tomando o ar, cobrindo as estrelas — não adiantava levar
os olhos aos céus, estava tudo apagado. Eu tinha de agradecer
pela beleza diante dos meus olhos, uma beleza dessas só se
pode ver uma vez na vida. Tamanha beleza só se pode ver antes
de morrer. É a terra de luz que Bedig avistou ao chegar ao cume
do Demirkazik, o que eu via naquele momento descendo a
montanha. Ninguém deveria ver tão cedo — porque depois disso,
o quê? Quando se tem oito anos, tudo é novidade. Quando se
tem oito anos, cada novidade é novidade. Quando se tem oito
anos, nem tudo é novidade, e o que é novo já toma um caráter
de espetacular, ainda toma um caráter de espetacular, não é
mais tão espetacular assim. O que importa é que as novidades de
oito anos — como as de sete, como as de nove — estabelecem a
força que deverão ter as novidades pelo resto da vida. E eu torcia
para que nada pudesse competir com aquilo. Nada poderia competir
com aquilo — embora eu não soubesse. No começo da
minha história, aos oito anos, eu já contemplava a visão mais
espetacular e terrível que se poderia ter na vida.

Meu irmão parou, virou‑se para mim, acocorou‑se e sorriu.

“Está com fome?” Tirou um damasco murcho do bolso e mostrou‑o
bem diante do meu nariz. Tive de envesgar para identificar
a fruta. Sabia que deveria recusar, e era fácil. Não estava
com (muita) fome. “Está cansado?”, meu irmão perguntou, ficando
de pé, pronto para me colocar nas costas. Me incomodava
ver todos os outros seguindo em fila, e nós ali parados, discutindo
questões como cansaço e damasco. Aos oito anos, eu já
sabia que isso não era adequado, e aos oito anos eu sabia que
meu irmão adolescente podia ter menos noção do que era adequado
do que eu mesmo. Ainda assim, pensava se deveria aproveitar
a brecha para verbalizar o que de fato mais me incomodava.

“Quero fazer xixi”, disse sem saber se deveria. Meu irmão
suspirou e olhou ao redor:

“Tudo bem, faça aqui, mas seja rápido.”

Ele me conduziu para o canto da trilha e ficou de tocaia
pelos soldados, enquanto nossos vizinhos passavam olhando para
nós como se dissessem: Vocês são loucos? Não é hora para isso!
Mal consegui. E, com a calça respingada, os dedos molhados,
voltei a dar a mão para meu irmão antes de me aliviar completamente,
nunca poderia me aliviar completamente. Mas já
conseguia ver minha aldeia queimar com um pouco menos de
ansiedade.

Seguindo pela planície, o calor do incêndio dava lugar ao
frio da noite. As cores não eram mais tão espetaculares, embora
o rio Perri continuasse a correr vermelho ao nosso lado. Era surpreendente
que aquele rio em que tanto eu nadara, sempre
constante e imutável, pudesse ganhar novas cores e continuasse
a refletir o fogo, como o eco visual de um incêndio que ficara
para trás. Então comecei a suspeitar que poderia ser outra coisa.

Percebendo meu olhar atento nas águas, meu irmão apressou
o passo, puxando minha mão.

Com o canto do olho, continuei observando o rio, que pouco
a pouco foi voltando a correr transparente. E foi quando novamente
se tornou cristalino que pude ver os corpos adormecidos
em seu leito.

II

“Só um minuto que dona Beatriz já vai receber você.”

Cláudio agradeceu e se sentou no sofá de veludo creme na
sala de visitas da casa da avenida Europa. Na mesa de centro, via
uma cobra de madeira envernizada, um lobo de porcelana, um
carneiro de ferro fundido.

Estava praticamente na sua rua, considerando que era apenas
uma reta, uma hora de caminhada do centro de São Paulo
ao Jardim Europa. Saía da praça Roosevelt, subia pelo baixo augusta,
descia a Alta Augusta, atravessava a avenida Brasil, rua
Colômbia, Groenlândia, o Museu da Imagem e do Som, que
sempre tinha exposições que ele adoraria ver; passava por concessionárias
Audi, Hyundai, Jaguar, Mercedes-Benz, perguntando‑se
quando apareceria um imóvel residencial; então chegava à
última casa sobrevivente da avenida, grande e térrea.

Uma empregada parda, de uniforme bege, o recebeu no
portão baixo da rua, então passaram por um grande portão para
uma antessala com um enorme espelho manchado, em que
Cláudio conferiu como estava suado da caminhada.

“Aceita uma água, um café?”, ofereceu a mulher.

“Não, obrigado. O banheiro?”

Cláudio foi conduzido a um lavabo, onde enxaguou o rosto,
trocou a camiseta branca suada por outra camiseta branca da
mochila, então seguiram até a sala de visitas. Sabia que esse tratamento,
como visita, não duraria. Era sempre nebuloso, as empregadas
nunca entendiam qual era o lugar dele, de início — se
deveria ser tratado como visita dos donos da casa ou como um
empregado, como elas. Aquela lá, inclusive, o lembrava muito
da avó paterna, que ele pouco conhecia, e que poderia estar ali,
ocupando aquele posto, oferecendo‑lhe café, conduzindo‑o até
o sofá.

Cláudio olhava os três enfeites da mesa de centro depois de
constatar pelo celular que não havia wi-fi. A rede mais próxima
era de uma concessionária, bloqueada. Suspirou. Parecia que
quanto mais dinheiro tinha o idoso, menor a probabilidade de
ter rede. Isso porque os idosos mais pobres tinham agregados,
eram agregados, moravam com parentes mais novos, que não
viveriam desconectados, ainda mais na companhia de um idoso.
Os idosos ricos podiam pagar pela solidão e pelo isolamento. E
ele sabia que estava lá por isso.

Notou uma manivela no carneiro de ferro. Girou. Uma caixinha
de música? Notou que o rabo funcionava como uma alavanca.
Pressionou. O carneiro irrompeu numa campainha estridente.
Cláudio tentou abafar a campainha. Girou a manivela. Apertou
o focinho. Sufocou o carneiro de ferro entre as pernas. Mas
a campainha continuava a soar.

“É para chamar os empregados”, explicou uma senhora sorridente,
de tailleur, entrando rapidamente na sala.

“Desculpe, achei que fosse uma caixinha de música”, Cláudio
saltou de pé, envergonhado, colocando o carneiro de volta
na mesa de centro. A senhora pressionou novamente o rabo, e a
peça ficou em silêncio. Estendeu a mão.

“Sou Beatriz, eu que te liguei. Sente‑se.”

“Prazer, Cláudio.”

Os dois sentaram‑se nos sofás frente a frente e Cláudio examinou
aquela mulher que aparentava estar na casa dos setenta,
talvez até oitenta anos, mas que parecia muito disposta, lúcida e
enxuta. E apesar do sorriso e da simpatia, ou talvez por causa do
sorriso e da simpatia, ele sentia que ela era do tipo que lhe causaria
problemas. Ele tinha experiência.

Quando começou a trabalhar com idosos, ainda na adolescência,
Cláudio teve a pior amostra possível da velhice: trapos
humanos, gente remendada, dilapidada, esvaída. Gente que precisava
ser carregada, arrastada, esfregada. Era isso que a Fundação
considerava digno do trabalho dos jovens. Nunca ele encontraria
uma senhora caminhante, sorridente, elegante, de posse
de todas as faculdades mentais. Quando passou a trabalhar para
particulares, para quem podia pagar, conheceu idosos queixosos
com todo tipo de caprichos. Um de seus últimos pacientes só
precisava de sua ajuda para abrir os frascos de remédio.

Cláudio sabia que dona Beatriz era sua contratante, não sua
paciente. “Precisamos que faça companhia para um senhor bem
idoso, com temperamento difícil, se isso não é um pleonasmo”,
ela lhe disse ao telefone. Por reflexo Cláudio já arrumou a postura,
como para direcionar a voz, pois o vocabulário indicava que
era um cliente com dinheiro… Agora ele se perguntava se Beatriz
era a esposa, a governanta — ainda existia esse posto na prática?
Poderia ser filha? Com um pai que teria de já estar nos…
noventa? Deveria ser esposa. Uma esposa incapaz de cuidar do
marido… ainda que bem-disposta e sorridente.

“Meu tio‑avô, Domingos Arakian”, ela se antecipou em esclarecer.
“Já passou dos noventa. É um homem ativo, lúcido,
razoavelmente saudável para a idade. E tudo isso é parte do problema.
É um homem entediado, perdeu a esposa há muitos
anos, não tem filhos. Fez fortuna no ramo de tecelagem, mas há
muito que os lanifícios foram fechados — a gente pode culpar o
aquecimento global ou simplesmente a informalidade crescente
do brasileiro, que não é mais capaz de suportar o calor para manter
a elegância. De todo modo, ele fechou a tempo e fez bons
investimentos, acabou com mais dinheiro do que pode gastar.
Assim, ele não tem obrigações, e a rotina é um ritual que ele
mesmo criou, como você deve bem entender.”

Cláudio assentiu. Conhecia bem o quadro. A velhice se estendendo
indefinidamente, sem função, para idosos que podiam
pagar por isso.

“Temos duas empregadas fixas nesta casa: a Clarice e a Hilda.
Estão aqui há quase tanto tempo quanto os móveis; não temos
como nos livrar delas, e seria impossível arrumar outras que
aceitem trabalhar nas mesmas condições, ainda mais depois dessa
pec… Elas moram aqui, nos quartinhos dos fundos, cada uma
folga um dia por semana, mas não dão conta. A casa é grande
demais, há muito o que fazer, pelo que elas dizem, e não podemos
confiar que cuidem para que ele tome os remédios no horário,
não podemos exigir que literalmente carreguem o tio nas
costas — são mulheres de uma certa idade, como você deve ter
visto. Não temos quem acuda caso ele caia no banheiro, coisa
que ainda não aconteceu, mas não vamos esperar que aconteça.”

Beatriz levantou o carneiro‑campainha. “A casa está cheia de
coisas como essas, desde os anos 60, campainhas, sinos, mas não
há um interfone ou panic button. Tentei instalar uma babá eletrônica,
que o tio sempre manteve desligada. Essas campainhas
podem parecer estridentes de perto, mas imagine vencer as paredes
desta casa, a tv ligada, os chiados da panela de pressão…”

Cláudio apenas ouvia, assentia e abria meio sorriso, tomando
o cuidado para que suas demonstrações de simpatia não fossem
confundidas com galhofa.

“Eu não posso vir sempre aqui”, continuou Beatriz. “Tenho
minha família, minha rotina, problemas suficientes para resolver
com filhos, netos e meus próprios empregados… Mesmo que
quisesse cuidar do tio Domingos, eu não poderia.”

Cláudio também estava habituado com essa parte do discurso
dos contratantes, claro…

“Ele já teve outros cuidadores. Bem… eram mais acompanhantes
do que cuidadores, algumas vezes por semana ou para
saídas específicas. Precisamos de alguém para ficar com o tio o
maior tempo possível. A madrugada talvez seja o mais importante,
porque as empregadas estão dormindo, mas também precisamos
de alguém para acompanhá‑lo durante o dia, fazer caminhadas
pelo bairro, de repente um museu, lembrar de tomar os
remédios… Enfim, o trabalho que você já deve estar acostumado
a fazer.”

“Entendo…” Cláudio respondeu. Uma das coisas mais
úteis que aprendera nesse trabalho fora ouvir, como ouvir, que o
sucesso de uma entrevista de emprego não dependia do que ele
tinha a dizer, e sim da forma como ouvia, deixava claro que estava
escutando, que prestava atenção — suas credenciais podiam
se limitar ao currículo. E ele tinha um currículo.

Beatriz então pegou um caderno e folheou para verificar.
“A moça da agência falou que você tem uma boa experiência….”,
comentou ela enquanto olhava anotações. O silêncio
depunha a favor de Cláudio. Ainda assim, mesmo sem dizer nada,
certa imaturidade berrava de uma forma que ele não podia
controlar: seu rosto infantil, ele aparentava menos, mal tinha
barba para tentar camuflar, e se tivesse também seria uma escolha
difícil entre parecer novo ou desleixado.

Cláudio buscou na mochila e tirou uma cópia amassada de
seu currículo. Perguntava‑se se o fato de usar mochila em si já o
infantilizava. Ele era homem, homens não usam bolsa, e vinha
de uma hora de caminhada, a mochila era a opção mais prática.
Notou os olhos de Beatriz procurando lá no alto da página, sua
idade: vinte e dois anos, então o tempo de experiência. “Você
começou cedo…”

“Sim, num projeto de uma ong”, explicou, sendo deliberadamente
vago para que ela não quisesse entrar em detalhes sobre
o que era esse projeto de fato. “Eles encaminhavam os adolescentes
voluntários para cuidar de idosos de comunidades
carentes.” O termo “voluntários” não era o mais preciso, “infratores”
seria mais exato, mas era isso.

“Muito interessante. Como é o nome do projeto?”

“Projeto Renascer”, Cláudio respondeu engolindo em seco,
temendo que ela buscasse mais informações on-line.

“Não conhecia”, respondeu Beatriz. “Sei que você também
tem experiência com idosos de famílias mais abastadas…”
Cláudio limitou‑se a assentir.

“Pode parecer besteira, e realmente é, mas faz diferença, entende?
As necessidades são outras, as manias, gente que está há
muitas décadas acostumada a ter todas as vontades atendidas…”

Cláudio assentiu novamente, então achou por bem enfatizar.
“Estou acostumado, tenha certeza.”

“É um equilíbrio delicado”, continuou ela, “atender às necessidades
do idoso sem se deixar levar totalmente por suas manias.
Saber ser firme quando é preciso que se tome um remédio,
que se livre de uma teimosia, mas também ter o respeito necessário
com quem nunca se acostumou a receber ordens…”

“Tenho experiência nisso, sim.”

Beatriz sorriu para ele, um sorriso que mais parecia avaliá‑
‑lo do que aprová‑lo. Ela o examinava. “Sua família….” ela enfim
disse, “veio de onde?”

Cláudio meneou, sem entender o propósito da pergunta.

“Daqui. São todos daqui… de São Paulo. Cresci no Bom Retiro.”

“Ah, meu avô, irmão do Domingos, teve um comércio ali,
na Dutra Rodrigues, sabe?”

“Sim, eu cresci lá do lado, na João Kopke…”

“Há anos que não passo por aqueles lados. Bem, agora está
impossível, virou tudo cracolândia… Você ainda mora por lá?”

“Não, moro aqui perto, no final da Augusta.” Ele sabia que
“perto” era um termo relativo, uma hora de caminhada, mas não
deixava de ser o final da Augusta, tecnicamente no final da rua;
para São Paulo era bem perto. Qualquer emergência, ele poderia
vir correndo. Se bem que, se parecesse que ele morava bem
demais, pareceria que ele não precisava e não se dedicaria ao
emprego…

“Na Roosevelt?”, ela acertava na mosca.

“Isso…”

“Ah, aquilo lá deu uma bela revitalizada, não é? Com os
teatros, a praça… Tenho um sobrinho que faz teatro por lá.
Aquelas peças de gente pelada”, ela riu.

Quando seus olhos se voltaram de novo para Cláudio, ele
soube exatamente o que se passava na mente da mulher: ela estava
constatando sua homossexualidade. Mas até aí, a praça Roosevelt
não o denunciava mais do que sua própria função. Cuidador
de idosos rivalizava com cabeleireiro e comissário de bordo
entre as profissões mais gays possíveis.

“É um lugar tranquilo para morar…”, ele se limitou a dizer,
não exatamente sincero.

“E é uma reta só mesmo. Fácil para você vir. Isso é bom.”
Os dois sorriram um para o outro, mantendo‑se em silêncio
por alguns instantes.

“Bem… você parece mesmo perfeito. É difícil arrumar um
cuidador homem, jovem, e eu sinceramente não queria colocar
outra mulher aqui na casa para cuidar do meu tio. Você entende?”

“Sim”, Cláudio avaliou que era o momento final para dar
uma cartada eloquente, “geralmente os clientes preferem cuidadores
do mesmo sexo do paciente, até pelas questões íntimas, o
banho, trocar fralda…”

“Acho que com isso você não terá de se preocupar, por enquanto.”
Ela sorriu, ainda o avaliando, parecendo avaliá‑lo positivamente.

“Bem, então vamos conhecê‑lo. Ele ainda é o homem
da casa, e é quem precisa aprovar você.”

*

Esses são os dois primeiros capítulos do meu novo romance, Fé no Inferno, que já está disponível em Ebook, pela Companhia das Letras. A edição física ainda não tem data - com as livrarias fechadas e a editora operando remotamente. No site da Amazon dá para ler esse início e mais uns dois capítulos (e comprar o ebook):

https://www.amazon.com.br/F%C3%A9-no-Inferno-Santiago-Nazarian-ebook/dp/B085VQZH59/ref=tmm_kin_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=&sr=

E terça agora falo sobre o livro ao vivo no Insta da Companhia:

Foto do Renato Parada, que valorizou a meia dúzia de pelos que tenho no peito. 


02/06/2020

A ÚLTIMA AVÓ

Eu e ela, há uns vinte anos. 

Ontem se foi a última dos meus avós, vítima de covid. 

Não vou me esquecer de chegar na casa dela, sempre aquele cheiro de canela no ar, ela na frente do fogão, a panela borbulhando, o avental sujo de chocolate, sempre preparando algo...

Não vou me esquecer porque isso nunca aconteceu. Essa imagem de avó eu não tive. “Sua avó não sabe nem pegar uma maçã da geladeira”, foi uma frase ótima da minha mãe, que até usei no livro novo. E não era exagero. Se minha avó queria uma maçã, ela tocava um sininho e alguma empregada trazia numa porcelana, limpa e cortada. Nunca trabalhou. Nunca cozinhou. Mas não deixou de receber os netos com guloseimas – compradas na Ofner e devidamente servidas à francesa pelas empregadas.

“Ninguém pode dizer que sou racista, porque todos os meus criados são de cor”, é uma frase real dela que escutei e nunca esqueci. Minha avó tinha valores estranhos... Quando postei no Facebook que ela havia sido hospitalizada, recebi dezenas de mensagens carinhosas, de gente que provavelmente a enxergava com sua própria imagem de avó, ou como um clichê de avó, como uma santa.

Talvez ela pudesse ter sido outra coisa, seguido outro rumo, se não tivesse tido de casar tão cedo, dentro da colônia armênia, se pudesse ter continuado a estudar, viajar, as coisas que ela gostava. Mas daí eu não estaria aqui...

A verdade é que ela já estava havia muitos anos debilitada, nada lúcida, tinha acabado de fazer 94 anos, morando numa casa de repouso. Então estava na hora, apesar de ser um momento tão complicado...

Eu gostava dela, como ela gostava de mim. Fui dos netos favoritos – e era generosa nos presentes, de viagens à Disney a intercâmbio na Inglaterra, ou o "Castelo de Grayskull". Durante a infância, sua casa no Jardim Europa era recheada de brinquedos para nós, e antes de eu aprender a ler, ela me lia as revistinhas da Marvel compradas na banca de esquina, da rua Groenlândia, Hulk principalmente. Ela era uma avó amorosa, mas não como as pessoas visualizam.  Desde criança eu nunca estava totalmente à vontade, por ela ser tão elitista. Na minha adolescência e começo da idade adulta, saíamos para jantar nos melhores restaurantes de São Paulo – meu lado burguês casava com o dela; o gosto pela gastronomia, as viagens, o cinema – porém os conflitos de valores, o moralismo, foram pesando cada vez mais pra mim. Foi ficando difícil conviver. Ela foi a única pessoa da família com quem nunca pude falar da minha homossexualidade. 

Foi a única imagem de avó que tive, afinal. Minha avó paterna morreu há uns dez anos, mas nunca convivemos – ela nunca deu bola para os “netos bastardos armênios”, embora (ou talvez porque) a família da minha mãe tivesse mais grana do que a dela. Me impressionou muito ler o livro do (meu primo) Rafael Cortez, na forma como ele narra essa minha outra avó (paterna), Helena, porque para mim ela nunca esteve presente.

Mas a avó "armênia", Zília Nazarian (de solteira, Gasparian, filha de Gaspar Gasparian, irmã de Fernando Gasparian, já falecido, fundador da Livraria Argumento e editor da Paz e Terra), mãe de minha mãe, deixará saudades. Ficou dez dias internada no Einstein, com o melhor tratamento que poderia ter. Triste que não podia receber visitas, por causa do covid, morreu sozinha, minha mãe querendo ir lá...

Não tivemos velório, mas houve um rápido enterro no cemitério da Cardeal. Foi bom para encontrar a família - a reunião possível, todos de máscara, sem ninguém se abraçar -, tenho tios e primos queridos. Uma tia inclusive não foi porque também está com covid. E foi a primeira oportunidade que tive de caminhar pelas ruas em muitas, muitas semanas. Ao cemitério e de volta. A gente sente falta de coisas tão básicas...

E é irônico que minha avó termine assim, bem quando lanço meu livro armênio, tão baseado nela (e no meu avô), passado na antiga casa deles ("a última sobrevivente da Avenida Europa", que hoje é uma concessionária Mercedes Benz), num livro que fala tanto sobre velhice, sobrevivência e resistência. 

A sensação que fica é aquela: a fila existencial anda. Já se foram todos os meus avós. Meus dois pais ainda estão vivos. Mas os tempos não são nada promissores.  

ENTÂO VOCÊ SE CONSIDERA ESCRITOR?

Então você se considera escritor? (Trago questões, não trago respostas...) Eu sempre vejo com certo cinismo, quando alguém coloca: fulan...